Arquivo da ‘Causos’ Categoria

Crônica de um pedestre

Bati meu carro há alguns dias atrás e só ontem levei à oficina. Fiz um esquema de carona casa para o trabalho e vice versa. Mas a de hoje de manhã furou. Resolvi vir ao escritório de ônibus. Fui para a parada mais próxima já com o sol castigando. Depois de uns 10 minutos encosta o coletivo lotado. Cheguei a pensar que não ia dar para entrar, era muita gente, fiquei indeciso, mas logo imaginei que o próximo coletivo poderia demorar mais de uma hora. Boto o pé no primeiro degrau com acara esfregando as costas de um outro passageiro e sinto um empurrão medonho me jogando prá dentro. Era uma mocréia com uma bolsa velha de buriti a tira colo. Só sossegou quando cheguei à catraca congestionada por uma gracinha que resolveu procurar um passe perdido num enorme sacola. O motorista acho que, percebendo a lentidão, deu uma arrancada daquelas, passei de uma vez pela roleta levando junto a empata fogo. Esbarrei num negão que de maldade pisou no meu pé enquanto voltava para pagar a cobradeira. Dei o dinheiro e fiquei esperando o troco.
– Não tenho troco prá dois real.
– Quanto é a passagem?
– R$1,75. Se quizé o troco espera aí.

Tá bom. Fiquei ali segurando um daqueles monte de ferro pregado no teto. À medida que ia entrando gente, a coisa ia espremendo e eu cada vez mais para o fundo do corredor. Meus 0,25 cents já eram. Fui parar entre duas pipirinhas bonitinhas embutidas em calças jeans num esfrega esfrega de pernas danado. Uma de cabelos loiros com óculos escuros que cobria quase todo o rosto e a outra pretinha de cabelos molhados escorridos pelo cangote e com as costas da blusa toda molhada que estava de meia bunda roçando minha coxa. Pelo menos havia me dando bem ali entre as duas. O odor era uma mistura química terrível. Fundiam-se perfumes e desodorantes de todo o tipo. Alguns vencidos e nauseantes. Acho que tinha até banho vencido.

A coisa melhorou um pouco após uma velhinha pedir para segurar minha pasta de trabalho. Relutei um pouco, mas a sua aparência era acima de qualquer suspeita. Pude segurar aquelas barras de ferro com as duas mãos e aproveitei para chegar bem o braço junto ao da loira.

Pensei, agora essa merda não vai mais parar. Não tem como entrar mais ninguém. Fiquei nas pontas dos pés e dei uma olha lá fundo. Parecia arenque no côfo. Certamente não haveria como entrar uma criança sequer. Mas qual o quê! Quando menos esperava, outra freada violenta. Despreguei-me das pipirinhas e fui parar encima de um sujeito de camiseta “Deus é Fiel” com o sovaco à mostra quase se esfregando na minha cara com aquele cheiro horroroso. O calor estava insuportável.

– p…! Esse cara é maluco!? Protestei indignado com a falta de respeito do motorista.
– Isso é “freada do arruma” resmungou o sujeito do suvaco.

Deve ter sido mesmo, pois acabou ficando mais folgado, embora tenha perdido a posição confortável entre a loira e a moreninha. Tentei dissimuladamente voltar junto delas, mas era impossível. Minha pasta ficou lá na frente no colo da velhinha. Tinha que ficar de olho. Vai que essa maluca desça antes que eu.

Já tava puto da vida, as “freadas de arruma” se sucediam e eu cada vez mais lá pro fundo, arrastando o cara do suvaco comigo. De vez enquanto usava os cotovelos prá ver se ele se distanciava um pouco. Consegui me ajeitar com a barriga escorada naquela alça de ferro de uma poltrona e de olho na velhinha. Nisso sinto uma pressão violenta no espinhaço e sou exprimindo com a barriga da p… do apoio de ferro que quase boto os fato prá fora. Respirando com dificuldade olhei prá trás e vi o saliente com cara de quem estava de ressaca com uma enorme mochila pirata dessas de marca presa no tórax Joguei o corpo por cima do passageiro sentado à minha frente para facilitar o trânsito do cara me espremendo ainda mais. O qualira ao invés de passar ficou ali parado. Olhei bem prá ele:

– Tu vais passar ou vai ficar aí embaçando?
– Num tem prá onde ir não!
– Se vira cara! Tu não tá vendo que estou todo exprimido aqui?
– Ô tio, num qué andá de ônibus compra um carro!

Ah sacana! Quase mandei o cara prá aquelelugar. Tinha um pircing de argola no nariz e tive que me conter para não arrancá-lo lembrando de um filme, acho, que do Steven Seagal. Mas ali era o pior lugar para arrumar uma confusão. Minha sorte que logo veio outro “freio de arruma”. Acabei me livrando do babaca.

Fui parar na porta dupla de saída preocupado com minha pasta que ainda estava em poder da velhinha. Uma morena gostosa com um decote generoso estava sentada na poltrona do corredor lendo um panfleto desses de promoção de super mercados. Olhando de cima o cenário era agradável e amenizava o estresse, embora disfarçasse de vez enquando. afinal não queria ser acusao em público de voyerismo. Segurei firme no apoio da poltrona no caso de outra freada. Dali ninguém ia me tirar. Não era como estar entre aquelas duas pipiras que agora estavam distantes, porém, melhor do que exprimido entre os machos fedorentos. Queria que a velhinha olhasse prá mim. Poderia pegar minha pasta e simulando um pouco de dificuldade e sofrimento quem sabe a morena da poltrona não pedisse pra segurar? Seria o máximo. Mas nada, a velhinha estava lá frente sentadinha quase cochilando. O espaço folgou um pouco e consegui encostar um dos joelhos na coxa da morena. Agora ia nessa até a minha parada final. Quando o coletivo parava parecia bode embarcado. Desciam 5 subiam 6 e era aquela agonia. Sentia o suor descendo pelos costados e pela testa e tomando cuidado prá neguinho não ficar roçando a minha bunda. Numa das paradas já próximo ao escritório, subiu um cego pela porta de trás, apoiando ao braço de um menino. Não acreditei! –Dê uma ajuda pro ceguinho, pelo amor de Deus! Dê uma ajuda pro ceguinho!

E foi o ceguinho levando o povo no peito tendo a criança como guia. Não sei se na prática, essa situação funciona para o deficiente coletar algumas moedas. Ali ninguém tem nenhuma condição de enfiar a mão nos bolsos ou bolsas. Em alguns momentos mal se respira.

Olhei pela janela e percebi que já estava mais próximo da minha parada. Agora tinha que traçar uma estratégia para voltar à velhinha lá da frente para recuperar a pasta. Mas para isso era obrigado me afastar da morena e daquele decote. Quando parecia que o corredor estava mais folgado, encosta uma figura do meu lado esquerdo, barbudo mal cheiroso, de bermuda, chinelo de dedo uma camisa desbotada do Corinthians com a inscrição no peito Kalunga! PQP onde esse cara arrumou isso? Só me faltava essa! Tentou segurar na alça da poltrona onde eu também estava seguro, mas dei um arruma nele com o cotovelo. O cara tinha o braço todo peludo e suava qual tal tampa de papeiro.

Ah chegou à parada! É de frente a um Shopping e percebi que o movimento da grande maioria era para desembarcar ali. Fiquei aliviado vendo a velhota vindo em minha direção com a pasta. A morena do decote levantou-se também e como eu estava esperando a velhinha, teve que passar entre eu e a poltrona. Aproveitei para dar um esfrega. Peguei a pasta agradeci e fui em direção aquele monte de gente querendo descer de uma só vez. Ainda tinha um gaiato que não ia desembarcar, atrapalhando a saída. O corintiano começou a gritar no meu cangote: arrócha, arrócha.

– Calma aí cara!
– Sai, sai que tô avexado! Fiquei puto mas retruquei:
– Tá avexado? Não quer andar de ônibus compre um carro! He he me vinguei!

Meu carro sai da oficina só na quinta feira! Tô fudido.

Cobrinha cú-de-cana

Esta estória se passou há dez anos atrás, quando eu e meu primo Adriano fomos pescar na Lagoa do CATRE, hoje denominado BANT. Naquela época, minha pescaria era meramente artesanal, não investia muito em equipamentos, quer dizer, não investia nada em equipamentos; pescávamos mesmo com varejão de três metros, na tão famosa pesca de “pindaíba”, que segundo o nosso Aurélio, quer dizer “falta de dinheiro”.

Chegávamos por volta das 13h e ficávamos pescando uns tapacás, que naquela época já eram abundantes. Em pouco tempo, enchíamos uma enfieira, e como era de costume, já íamos tratando os bichinhos, para não ter que faze-lo em casa, até que chegasse a hora da verdadeira pescaria que tínhamos ido fazer. …a pesca da traíra. Naquela época, costumávamos pegar traíras de até três quilos. Era mesmo de tremer a vara, quando uma agarrava o anzol.

A lagoa não tinha suas margens tão devastadas, quanto é hoje. Havia muita vegetação e os juncos tomavam conta de toda a beira d’água, o que proporcionava ótimos pesqueiros.

Nesse dia, por volta das 17h, começamos a nos preparar para pegarmos as nossas primeiras traíras, pois já era hora boa. Como ninguém é de ferro, e precisávamos de algo que aquecesse a noite que já vinha caindo, levávamos uma garrafa de cachaça, que de trago em trago, já beirava o meio. Não demorou, e as primeiras traíras bateram nos anzóis, devidamente iscados com pedaços de tapacás. A noite começara a cair, quando ouvimos bem próximos, um tipo de som, muito parecido com miado de gato. Era quase um gatinho desesperado, e não parava um só instante. Aquilo me deixou nervoso e indaguei com meu primo, o que seria aquilo, que prontamente respondeu:

– Você nunca havia ouvido esse barulho?…é o barulho de um caçote sendo engolido por uma cobra.
– O que é um caçote? Perguntei de imediato!
– É um tipo de rã que fica na beira das lagoas, e que é a melhor isca para pegar traíra que eu conheço. Disse ele já se levantando, com a intenção de procurar a cobra, e capturá-la, para  pegarmos o caçotinho para fazê-lo de isca.

Procuramos, por cerca de cinco minutos, seguindo o som do “miado” do caçote em meio aos juncos e encontramos o bichinho com a metade do corpo dentro do maxilar de uma cobra corre-campo de quase um metro de comprimento. A cobra estava imóvel, pois é assim que ela fica quando está se alimentando, e não teve a intenção de fugir; o que facilitou que a pegássemos e retirássemos de sua boca a  pequenina rã.

Pequenina era o modo de dizer, pois a mesma tinha de largura de corpo quase três vezes a largura da cabeça da cobra. Para engolir a rã com todo aquele diâmetro de corpo, a cobra dilatou o maxilar para conseguir engoli-la e permaneceu assim por algum tempo quando retiramos o bichinho de sua boca. Ao ver aquela boca toda “arreganhada” quis fazer uma experiência e coloquei um gole de cachaça goela à  dentro da cobrinha e a soltei no chão pra ver a sua reação que não foi outra; a cobra se contorceu por um instante e disparou para dentro do mato sem deixar vestígio. …após algumas risadas, por ver o desespero da cobra, cortamos o caçote em quatro pedaços e iscamos os anzóis com a certeza de pegarmos boas traíras.

Já quase escurecendo e com os anzóis na água à espera da fisgada, o silêncio do crepúsculo que até então só era quebrado pela cantiga de sapos e de grilos, foi estremecido por um som de um chicote, seguido do grito, quase de parto, de meu primo, que largou a vara da mão, pulou por cima do junco e caiu dentro d’água, com os olhos esbugalhados.  Assustado, olhei para o local onde ele estava e fiquei perplexo ao ver aquela cena: a cobra que achávamos que tínhamos sacaneado, voltara com mais dois caçotes na boca, para trocar por mais uma dose de cachaça.

Daquele dia em diante, não nos faltou caçote para pegarmos traíra, pois fizemos uma parceria e sempre que íamos pescar, levávamos uma garrafa de cana e ao chegar na lagoa já encontrávamos com a cobrinha às margens com uma meia dúzia de caçotes já a nossa espera, até o dia que a encontramos morta, toda inchada, com os sintomas de cirrose.

Como ela morreu eu não sei, só sei que foi assim!

Vejam as fotos da bichinha!

Zé Bago e Óta (solucionado o problema)

(ler primeiro Zé bago e o touro do Pareia)

Óta e Zé Bágo recolheram uns novilhos no curral com o propósito de escolher um para substituir o que Zé Bágo inadvertidamente castrara apenas para comer os bago frito. Isso teria que ser feito de forma que o Pareia não desconfiasse, o que não seria muito difícil. Afinal, eram quase todos iguais, nelores, brancos e mochos. Apenas por precaução, teriam que apartar o que mais se assemelhasse com o infeliz desventurado. Selaram um acordo que, a permanecer tudo bem entre as partes, nada seria revelado ao patrão. Pacto de mútua confiança que, entre gente dessa estirpe nunca é desfeito. Zé Bágo agradecido, já nutria grande respeito ao companheiro que, condescendente evitara o prejuízo no primeiro salário ou até, porque não, o desemprego prematuro. Selecionaram, entre alguns, dois garrotes que na avaliação do Óta, nem o cão iria desconfiar ainda mais o Pareia. Por ora, faltava eleger o que seria juntado aos demais para futuros reprodutores da fazenda, talvez já para o próximo ano.
—Esse daqui tá com o zóio meio de banda e o espinhaço arriado.—ponderou Zé Bágo.— As venta tão muito seca! —concluiu Óta, decretando o futuro do preterido.
—Vamu dexá ele preso até amanhã, modi misturá com os outros.
O que ficara, foi examinado mais uma vez, de cima a baixo. Talvez a escolha fosse até melhor do que a do Pareia, afinal acompanhara o nascimento de todos eles e com a experiência acumulada durante anos e anos na profissão de vaqueiro, não poderia enganar-se. Até a marca a ferro estava na mesma posição, na parte de cima da paleta do lado esquerdo. Não tinha erro!
Alguns dias depois, no pouco tempo que lhes sobravam, Óta estava preparando um coalho para o leite de uns queijos, parte integrante da dieta na fazenda, quando notou por uma fresta da cozinha, um movimento suspeito de Zé Bágo. Saiu apressado para o quintal e viu o companheiro que, arqueado sobre uma pedra de amolar, próximo ao curral onde estava preso o novilho escolhido a dedo na tarde anterior, fazia movimentos rápidos de vai e vem com os braços afiando seu canivete de estimação. Óta disparou na direção de Zé Bágo e desesperado bradou:
—Ô corno fiu de rapariga, larga esse canivete de mão! Tu és doido é? Se capá o outro novilho eu arranco seus culhões também! Tu guarde esse canivete que aqui não vai capá mais boi nenhum! — esbravejou Óta de forma agressiva e hostil, como ainda nunca tivera presenciado Zé Bágo
—Num se avexe naum homi!—respondeu tranqüilo o vaqueiro, sem que parasse os movimentos. —Num vô capa boi nenhum naum! Só táva dando fio no canivete modi raspá umas tiras de couro!
—Ah bão! —suspirou aliviado o Óta, voltando ao trabalho, mas de olho na fresta da porta. Minutos mais tarde Zé bago se aproximou do companheiro, com jeitão de leso passando o polegar da mão direita sobre o gume da lâmina do canivete para testar o fio e puxô prosa:
—Tive arreparando uns garrote aculá prás banda do rio tudo bão de engordá.
Óta permaneceu em silêncio, fingindo não ter ouvido a insinuação, concentrado que estava no queijo que acabara de prensar na forma de pau de castanheira, o mió que há. Zé Bágo, não se deu por satisfeito. Sentou-se ao lado dos cachorros que cochilavam com as cabeças entre as patas e arriscou:
—Tô achando esses cachorro muito magro! Tá naum Óta? O côro chega tá desapregando do espinhaço—insinuando que os cães precisavam de comida e era óbvio que o menu teria que ter os testículos do gado, a pretexto de também se deliciar com o petisco.
—Oiá aqui Zé bago, tu cale essa boca! Num pensa em outra coisa não? Só capá boi, fiu de uma égua! Me deixe de mão homi!
—Tá bão, tá bão Óta! Mais que o bichinho tão só no osso, isso tão! Si tivesse uns bago modi fazê um cuzido prá eles…era bão!

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