Arquivo da ‘Causos’ Categoria

Zé Bago e o touro do pareia

Voltamos ao Pará para outra pescaria na fazenda do nosso amigo Pareia às margens do rio Vermelho. Junto com o seu vaqueiro Óta, estava esfuziante.
A vacada fora manejada. para pastagens descansadas formadas por pequenas planícies, planaltos e vales verdejantes, de capim nutritivo e de muita sustança. As chuvas em abundância e, no tempo certo, foram uma dádiva da natureza como sempre, apesar das agressões contínuas e violentas a ela imposta sem piedade. Não se via mais as queimadas que precedia a derrubada da floresta, em gigantescas aspirais que cobriam o céu por dias seguidos. A região, próxima às encostas da Serra dos Carajás, no sul do Pará, com grandes extensões de pastagem e campos estava verdejante. O cenário era de uma paisagem cheia de vida demarcada por centenas de pontos brancos das silhuetas do gado pastando, contrapondo-se ao do período da seca, de aparência estéril, quase desoladora. Quinhentas rezes começariam a parir entre julho e outubro, quase que simultaneamente e isso, entre outras coisas, significaria trabalho duro, coisa para vaqueiro destemido, aguerrido e experiente. A tarefa penosa de, diariamente, revisar e restaurar cercas, ajudar partos complicados, apartar bezerros prematuros com defeito de nascença, arrumar ama de leite para os órfãos, vacinar e marcar recém nascidos, entre diferentes ocupações, levara o Óta a interpelar sem muito rodeio o patrão:
—Siô, a coisa tá arrochando! — foi direto e incisivo.
—A vacada tá parindo feito preá na roça e o trabaio tá drobado e tu agora não qué mais nada com a dureza, não vou dá conta naum sinhô! O aperreio é grande!
Reclamava com razão. Pareia vivia mais na cidade e até então, Óta estava dando conta do recado, porém com as vacas começando a parir, a situação estava mudando e isso o deixava preocupado.
Pareia relutou um pouco, mas concordou. Afinal não estava mais se dedicando à lida como dantes e também, pelo menos por ora, não abriria mão da vida boa e agradável da cidade, no meio do raparigal.
Na semana seguinte apareceu com um vaqueiro trazido lá das bandas do Parauapebas. Ainda muito jovem, contudo, bem recomendado por conhecidos. Pareia apresentou-o ao Óta e fez algumas recomendações enquanto mostrava de forma superficial a propriedade. Óta se deu por satisfeito com o novo colega, certo que de físico pouco atarracado, meio magro, mas nada que o descredenciasse para o posto. Vaqueiro tem dessas coisas, não é pelo tamanho que se escolhe.
—Conheço pião bão de lida na primeira óiada. —comentava com atributo de quem nascera na lida e revelando alguns quesitos para a conceituação:
—Pernas troncha, arqueadas, meio de rosca, modi a roseta segurá o vazio do animal, mão fortes, de macho, cabeça erguida e não pode tê cú seco, aí sim, reseste o baque de sela.
Pareia deixou os vaqueiros sós e retornou à cidade. Não houve formalidades na apresentação. Enquanto Óta apartava a montaria escolhida para o novo companheiro, para sem delongas iniciar o trabalho da fazenda, perguntou lhe o nome.
—Zé! —respondeu em monossílabo.
—E Zé de que?
—Zé Bágo!
Óta achou o nome no mínimo curioso, mas para ele bastava, visto que por aquelas bandas não era costume das pessoas terem nomes de pronuncia complicada e longa, Zé estava bom demais!
Passaram-se os dias e Zé Bágo, cada vez mais, demonstrava suas qualidades de bom vaqueiro. Ágil no laço, bom de galope e muito preparo em arrebanhar, manejar e tanger o gado. Óta estava satisfeito, além de tudo ganhara companhia permanente na casa da fazenda, onde andava muito solitário desde a partida do patrão. Certo dia, durante os preparativos para a castração de quatro novilhos pra engorda, confinados numa pequena baia, trabalho que também testaria o novato, Óta descobriu o significado da palavra Bágo que Zé trazia associado ao nome.
—Êi Óta, tu gosta de cumê os bágo dos bichu?
—Má rapáiz, como é tudinho! Dou uns pros cachorros e o resto passo na banha quente e misturo com farinha. — respondeu dando a receita.
—E tu Zé Bágo?
—Não perdo unzinho! Oiá só o nome, Zé Bágo, isso é modi a mania que tenho de apriciá muito os culhão do bicho! É frito, é na brasa, do jeito que vinhé!
—Então adespois assepára uns aí pros cachorros e aprepára o resto modi fazê o frito antes do escurecê. —ordenou o vaqueiro chefe.
O testículo do boi, após a castração, é muito disputado entre vaqueiros e cachorros nas fazendas pecuaristas da região. Os cães comem in natura, mas peões os transformam em iguarias preciosas. Os novilhos, de pouca herança genética ou aparência sem muito garbo, aos quais recai a triste sina, são submetidos a um tratamento de exclusão traumatizante, doloroso e rudimentar durante o processo. Não há nenhuma comiseração por parte dos vaqueiros, nenhum anestésico ou qualquer outro método que possa aliviar o trauma do animal, quanto muito, uma lavada rápida com anti-séptico no interior do escroto que, aberto a canivete, apresenta-se flácido e sanguinolento depois de extirpados os bagos. Óta garante que em poucos dias estão pastando e com o ferimento cicatrizado:
—Ficam parecendo umas nuvia fresca de tão manso. É só não descuidá modi num dá bicho. —esclareceu com sapiência.
Terminada a castração e após as recomendações, Óta deixou Zé Bágo finalizando o trabalho de confinamento dos animais e foi reparar uma vacada prenha em outra pastagem. Retornou já no fim da tarde, tirou a sela da montaria ofegante, tomou um banho de cuia rápido e aproximou-se de Zé Bágo:
—Tô brocadinho de fomi! Fritô os bágo? —perguntou ansioso e esfomeado.
—Já tão preparadinho, na farinha. —respondeu-lhe o cozinheiro improvisado.
—Vixê, deu foi muito! Tu não deste nadinha pros cachorros?
—Dei nada naum! Os morto de fomi fizeram foi roubá antes que eu desse fé. Óta, analfabeto de pai e mãe, mas bão de conta de cabeça estava desconfiado daquela história. O resto da subtração não batia com sua equação. Sagaz, inquiriu o novato:
—Roubaram quantos?
—Quatro bágo!
—Tu tá mim enrolando homi! Aqui tem seis bágo, se roubaram quatro tinha que tê sobrado só quatro—contestou enquanto recontava os testículos mergulhados na farinha, separando-os com um garfo.
—Tu não sabes contar naum? Os cachorros roubaram num foi dois? Então? —meio desconfiado e sem jeito, Zé Bágo justificou-se:
—Sabe o que é Óta, esses ladrão roubaram quatro bagos, eu achei que a sobra era pouca modi fazê o frito e capei aquele outro novilho do curral de lá, aquele metido a besta!
—mae que pariu Zé Bágo, tamu fudido! Tu é louco é? Capô o boi que o homi escolheu modi cubri, as vacas pro ano, seu fio de uma égua! Tu vai ter que pagá o nuvio de estimação do patrão! Inté nome já tinha!
—Num sabia naun sinhô que era prá reprodutô!
—E agora? O que é que nóis vamu fazê abestado?
—Ué, vamu cumê! E vamu que tá esfriando!—respondeu Zé Bágo, calmo, não demonstrando nenhum remorso. Óta apanhou o prato em silêncio, serviu-se de uma porção de arroz requentado com feijão de corda, dividiu a farofa de bagos com o companheiro e balbuciou pensativo:
—É, o jeito! Mais que tamu fudido tamu!
Sentaram-se no mocho de madeira com os pratos na mão e começaram a comer. Os dois cães, ruins de guarda, mas bons de lida com o gado, estavam deitados ao lado com olhos fixos nos pratos dos vaqueiros. Zé Bágo os mirou bem, bateu o pé no chão ameaçador e resmungou:
—Dois ladrão féla da mae! Tinha que roubá os bago dos boi!
Tentava induzir o Óta a acreditar que a culpa da desgraceira poderia perfeitamente recair sobre os dois pobres cães.

A onça do rio Carú

A noite veio repentina, como um véu escuro estendendo-se sobre a imensidão da floresta. Seu teto sem estrelas, sem luz ,por mais paradoxo que pareça, traz uma indescritível sensação de calma e uma incrível paz de espírito. O acampamento armado à beira do rio Carú, extremo oeste da Amazônia Maranhense, permitia ouvir o incessante borbulhar das águas rápidas rasgando caminho entre troncos e coivaras entrelaçados pelas margens, características de rios amazônicos. À noite a umidade do ar diminui sensivelmente e a aragem refrescante conforta seu corpo exaurido das pescarias do dia. No rio Carú navega-se por horas e horas em busca dos melhores pesqueiros por trechos que não permitem o uso do motor de popa devido às estruturas de pauleira que obstruem a passagem aqui e acolá, e aí, a opção é remo ou o marajá.
O orvalho caia lentamente escorrendo pelas copas fechadas das árvores e com ele o aroma agradável que exala das flores e frutos deixando o ar leve e perfumado, como se pudéssemos tocá-lo com as mãos num buquê invisível.
O acampamento, iluminado com a luz amarelada do candeeiro e da fogueira central, é tomado por um clima amável e descontraído. Todos atirados em suas redes após o jantar, discorrendo sobre suas performances, vantagens e alguns inevitáveis exageros do dia numa espécie de reminiscência dos acontecimentos da pescaria, tudo com muita alegria. São momentos como esses que nos levam a algumas reflexões, enaltecem o espírito e renova a nossa alma num momento singular e mágico. Isso não tem preço!
Minha rede estava paralela ao do Juba, a do Alessandro e Guiga, ao fundo, a do Maguari, um negro magro, alto, biótipo fora dos padrões regionais, lembrando um masai das planícies do Seringeti, talvez seus ancestrais. O apelido, certamente, uma alusão ao pássaro pernalta da Amazônia (Ciconia maguari), que vive nos grande lagos da floresta. Não tinha o hábito de andar calçado e seus pés enormes, apresentavam-se com os dedos abertos e esborrachados. Nascido e criado por aquelas plagas vivia da caça, pesca e do pequeno roçado de subsistência. O conhecemos de uma viagem anterior, no entanto, estava nos acompanhando pela primeira vez. Caboclo matreiro de conversa fácil, gaiato e brincalhão, mas sem perder a candura e a simplicidade do caboclo amazônico, com suas crendices e superstições. Gostava de vangloriar-se dos conhecimentos que tinha da região, o que era fato notório, mas exagerava nos causos. Era o nosso guia.
Enquanto conversávamos estendidos na rede, Maguari preparava duas fogueiras, uma ao fundo do acampamento no sentido da mata e outra na lateral, na boca de uma vereda que também rumava ao interior da floresta. Fingimos não entender a situação embora já tivéssemos usado a estratégia em outras oportunidades, sempre que acampados em áreas de floresta densa.
—O que tu vais fazer aí Maguari?—inquiriu-o um dos meus filhos.
—Fazê fogo mode as onças num chegá!
—Tu sossega, aqui não tem onça!—provocou o Juba.
—Num tem?! Aqui tem delas que carrega um boi no espinhaço! Dias atráis, lá prás banda do Juriti mataram uma de mais de treis braça. Da ponta da venta inté o rabo. A bicha era grande! Morreu na fumaça do tiro adespois de cortá dois cachorro no dente.
Agora era só dar trela pro caboclo prá conversa espichá.
—Quem foi que matou essa onça?—Alessandro começava a animar o mateiro.
—Siô, foi Zé Jurupoca, um cumpadi meu, cabra caçadô di onça e dos bão! A danada morreu com a cabeça do porco entalada na goela!
—Espera aí Maguari! Tu não estás querendo dizer que a onça engoliu o porco todo!
—Sim sinhô! Só não engoliu todo mode os cachorros que acuaram e cumpadi Zé Juropoca chegou na hora.
O riso foi geral, de forma estrondosa e espalhafatosa.
—Maguari, onça não engole a presa inteira. Ela esquarteja o animal e vai engolindo aos pedaços. A sucurujú é quem engole de uma só vez!
Alessandro e o Guiga tentavam esclarecer incoerência de comportamento do felino sem sucesso.
—É que ocêis num conhece os bicho daqui! São tudo sabida! Quando num dá tempo de rasgá a carne ela engole inteiro!—argumentava sem aparentar nenhuma sujeição.
As duas fogueiras estavam prontas. Os toros de lenha iriam arder durante toda a noite segundo a previsão do guia que agora se aconchegava à rede.
O Juba o atentou dizendo que as fogueiras iriam servir só para atrair a surucucu (Lachesis muta), a temível víbora amazônica.
—Num tem pobrema não! Se ela chegar aqui acaba pulando no fogo e morre tosquiadinha, tosquiadinha. Uma veis tava eu, Chico Chaga e….. —lá vinha outro causo desses prá não perder o fio de meada. Suas histórias fluíam fácil do seu imaginário aproveitando sempre as deixas de qualquer um de nós.
—Ei Maguari, agora chega. Vamos dormir um pouco!
A noite foi tranqüila, o sono profundo nos pegou de forma inevitável. Foi eu quem primeiro acordou. Dei uma volta pelo acampamento e vi as duas fogueiras do Maguari apagadas, apenas as cinzas ainda quentes. Apesar da penumbra no interior da floresta notava-se a névoa branca que subia lentamente da superfície das águas do rio Carú, refletindo timidamente a luz do sol. Enquanto preparava o café, um bando de araras pousou no alto de um bacurizeiro, enraizado majestosamente ao lado do acampamento, num alarido tão estridente que ecoava há léguas pela mata, como se estivessem querendo, propositadamente, chamar nossa atenção. Maguari tinha acabado de levantar-se. Corri ao interior do acampamento para despertar os meninos. Não podiam perder a aquele espetáculo da natureza. Não era a primeira vez que estávamos sendo privilegiados com tão rara contemplação, contudo, não é sempre que se tem a chance de se interagir com cenário dessa magnitude e precisávamos aproveitar. A visibilidade ainda era pouca, mas podíamos divisar seus movimentos e suas cores brilhantes. Ficaram naquela folia por alguns minutos e numa revoada sincronizada cruzaram o rio até desaparecerem pelas copas das árvores.
A higiene pessoal fazíamos ali mesmo no rio. Uma pequena praia de areia muito branca nos deixava à vontade. Reunimo-nos para café que deveria ser avexado, pois a programação era aproveitar bem o dia. O semblante de todos sugeria que o descanso da noite fora sereno e reparador. Alessandro, Juba e Guiga estavam impacientes e com enorme expectativa para a pescaria visto que, como combinado, o guia iria nos levar no rio Juriti, local de grandes surubins, garantia. De pé, com uma caneca de café com leite numa mão e biscoitos na outra, puxou conversa.
—Seu dotô drumiu bem?
A pergunta me parecia meio irônica envolvida em um pouco de deboche. O negro queria nos provocar.
Dei uma inspirada profunda de ar puro e respondi calmamente:
—Dormi nada Maguari! Fiquei a noite toda atiçando a lenha das fogueiras ali fora.
—As fuguera apagaram?
—Não apagaram porque eu não deixava. Já estava dormindo quando escutei um barulho que parecia um assopro, fuuuuuu …..fuuuuu. Quando eu olhava tava lá o fogo enfraquecido, quase apagado. Levantava atiçava a fogueira outra vez e mal deitava na rede escutava aquela zuada: fuuuuu….fuuuuu, era o assopro novamente e lá ia eu chuchar o fogo e assim foi até amanhecer o dia.
Os meninos começaram a rir dissimuladamente para não desviar a atenção do caboclo, muito interessado na conversa.
—O sinhô num arreparô o que era?
—Reparei sim, mas só de madrugada. Já estava cansado de deitar e levantar, deitar e levantar. Agarrei a lanterna e foquei a luz nas moitas, levei um baita susto com o que vi.
Nessas alturas o negro já não agüentava mais de curiosidade.
—Óxente! E era o que?
—Tu nem vais acreditar! Duas onças acoitadas atrás das árvores, assoprando o fogo para apagar e nos atacar. Eu acendia, elas apagavam, acendia e elas apagavam e isso foi noite afora!
Os meninos não se contiveram e caíram numa gargalhada deslavada quase rolando pelo chão. Parecia que tínhamos pregado uma peça no caboclo. Mas não perdeu a compostura. Olhou para os meninos que continuavam a rir no tom de escárnio e muito sério retomou a parte da conversa:
—Óxente e foi mesmo? Eu num falei! Eu num falei! As bicha daqui tem muita sabidoria. Sabida que parece gente! Uma veiz, eu, mais cumpadi Zé Pitomba, fumo numa caçada e uma onça…
—Tá bom Maguari, tá bom! Vamos embora botar as tralhas no barco que o sol está levantando, deixa essa história prá outra hora.
Lá tava Maguari preparando réplica com mais um causo de onça que assoprava fogo só para não perder a pose. Fora interrompido por um dos meninos, mas arrematou:
—Óia só seu Roberto, tão pensando que é mentira! Esses minino num sabe de nada! Num é naum?
—É Maguari, é! Arrematei o assunto caminhando para o barco acompanhando os meninos.

Pareia e João Teimoso

A pescaria era um objetivo antigo, mas fora planejada às carreiras. Fomos acampar no rio Vermelho, no Pará, próximo a serra dos Carajás na Amazônia paraense. Tínhamos boas referências da piscosidade do rio, todavia, nenhuma indicação da estrutura para acampamento. Chegamos a Eldorado dos Carajás e em seguida, na companhia do Walter, morador local e acostumado a pescar na região e que se propôs a nos acompanhar na aventura, fomos para uma fazenda cortada pelo rio. No caminho, meio apreensivos perguntamos ao Walter se não tinha nenhum problema em pescar em terras alheias. Respondeu-nos que era amigo do proprietário e não tinha nenhuma restrição apesar de não saber exatamente o local que nos levaria para acampar. Depois de algum tempo, já na fazenda, conseguimos divisar ao longe um rancho aparentemente desocupado. Foi uma dádiva. Estava abandonado. Sua estrutura precária, mas aparentemente bem seguro na sua cobertura de palhas de palmeira. Para nós estava ótimo! Num rápido mutirão conseguimos fazer uma limpeza no rancho que estava servindo de abrigo para o gado, e descarregar a tralha toda. Acendemos o fogo e improvisamos algumas prateleiras e ganchos para redes e o local ficou perfeitamente adequado às nossas modestas exigências. Fizemos uma rápida merenda e fomos pescar.
 No dia seguinte de manhã, estávamos ainda no rancho preparando a nossa saída para o rio, quando recebemos a visita de Sr. Tavico e seu vaqueiro. Chegaram montados em dois burros baios ofegantes e inquietos. Apearam e entraram no rancho. O Walter nos apresentou ao proprietário da fazenda. Sem isso não seria possível diferenciar o fazendeiro do empregado. Estatura mediana, encorpado, cabelos grisalhos dos seus cinqüenta e tantos anos e semblante bonachão. Vestes rasgadas e um chapéu de abas largas e já bem surrado na cabeça, foi logo se enturmando. Moravam sós na sede da fazenda cuidando das criações e dos afazeres domésticos. Censurou-nos por não termos lhe procurado para indicar um local mais confortável para ficarmos, pois na fazenda tinha vários ranchos em melhores condições. Preferimos ficar ali mesmo. Alegre, fala rápida e quase ininterrupta, nos envolveu de tal forma que parecia nosso antigo conhecido. Alessandro, Juba e Guiga se entusiasmaram com a figura ímpar e começaram a especular sobre a piscosidade do rio Vermelho. Alertados que fomos pelo Walter, tínhamos levado umas garrafas de cachaça 51. Era a preferida deles e antes de nossa partida, fez questão de nos mostrar a sua torre ao ar livre, com mais de trezentas garrafas de cachaça vazias simetricamente empilhadas, que guardava como suvenires. Era o que ele chamava de estáuta, referindo-se ao que julgava ser parecido com uma estátua.
 Era ainda de manhã, mas o Guiga arriscou:
—Seu Tavico, não quer tomar uma 51 prá rebater o calor?
—Tu tá brincando! Tem aí a mardita?
—Temos!
 Incontinente, com os olhos brilhando, pegou o copo e serviu-se. Seu vaqueiro o seguiu numa dose generosa, deixando antes atirado ao canto, o gole do santo.
—Vixê! Essa é da boa!—passou o dorso da mão calejada pela boca enxugando os lábios, cuspiu do lado, ficando aparentemente mais animado, e prosseguiu:
—Pareia—é o pronome que usa para tratar todas as pessoas, sem nenhuma exceção, deixando claro que podíamos também, chamá-lo de Pareia—isso aqui tem peixe de toda marca!
 E aí discorreu sobre os espécimes e seus tamanhos. Revelou-nos a existência de uma lagoa, dentro de suas terras, que na época da monções entram centenas de peixes de várias espécies, incluindo o pirosca (pirarucu) que ficam aprisionados até o ano seguinte. Ele proíbe terminantemente a pesca predatória ou sem sua autorização. Quer preservá-la! Todavia, precisou colocar um vigia para assegurar que suas ordens fossem cumpridas.
—Pareia e aí, —prosseguiu ele —botei um vigia na lagoa pra arrepará os peixes, mas o infeliz começou a vender os piroscas e tive que mandá o cabra safado embora!
—Como é que ele fazia com os piroscas? —perguntou Alessandro enquanto ajeitava o fogo no chão.
—Pareia, o féla da mae deixava os pescadô pegá os pirosca de mais de cem quilos na rede, por dez ou vinte reaus.
 Não tendo alternativas para evitar a pesca desautorizada e predatória, ficou ele próprio mais o seu vaqueiro, revezando a vigilância. Mas era complicado. A lida com o gado durante o dia os deixava exaustos além do que, tinham que cuidar da própria bóia, e a noite os invasores aproveitavam à falha na segurança. Preocupado, não se fez de arrogado, acompanhado do vaqueiro, foi até a beira do lago, no local de melhor acesso onde era mais comum à presença de pescadores, e juntos, fizeram uns amontoados de terra, simulando umas sepulturas de cova rasa. A garrafa de cachaça e o copo ficaram sobre um tronco cortado que servia ao propósito de uma pequena mesa, desde o primeiro gole. Calmamente serviu-se de outra dose, estalou a língua e acrescentou:
—Essa tá descendo macio! —como se nunca tivesse tomado uma cachaça. O vaqueiro sempre o acompanhava.
—Pareia—continuou ele arrumando o chapéu de abas largas com a borda suada—como eu dizia, fizemos uns tumus (túmulos) de terra, bem ajeitado, com uma cruiz de madeira arrumadinha. Na boquinha da noite nóis fumo pra lá e acendemu umas velas encima das covas. Aquilo ficou bonito Pareia! De longe parecia um monte de zóio de jacaré encandeado, tudo alumiadinho!
 Ficaram de tocaia e aguardaram um pouco, torcendo para que naquela noite, os ladrões de peixes retornassem.
–Pareia não demorou muito, nóis escutamu uma zuada de gente, eram três safados chegando de mansinho. Quando estavam preparando as tarrafas, nóis chegamu de veiz.
—Tão dando uma pescadinha aí siô?—perguntou o fazendeiro abordando os invasores de forma intimidadora.
—É tamu tentando aqui—respondeu um deles assustado com o flagrante.
—E pediram prá quem?
—Pidimu prá ninguém naum sinhô! —falou aperreado o que parecia ser o chefe.
—Isso aqui tem dono, e é improibido entrá aqui prá pescá!
—Nóis num sabia naum sinhô!
 A conversa começava a ficar meio tensa e os pescadores clandestinos constrangidos, procuraram amenizar a situação. Tinham visto os tumus já na chegada, e um deles querendo desviar o assunto na tentativa de acalmar a situação, perguntou:
—É de cristão essas cóva aí siô?
—É sim sinhô! —respondeu de pronto o fazendeiro.
—E quem são os finados?
—João teimoso e Zé teimoso! —Pareai era dono da situação e tinha a resposta na ponta da língua.
—João teimoso e Zé teimoso?
—Sim sinhô!
—Nunca vimu falá! Cuma é que faleceram os finadu? Mode que? —arriscou o que estava com a tarrafa na mão.
—Di teimosia, di teimosia!—retrucou Pareia, batendo de leve com um facão no cano na bota, de forma intimidante.
—Andavam por aqui pescando e eu sempre aconceiando, aconceiando, dizendo que não podia pescá. Eram muito teimoso e óia aí o resultado. Acabaram desse jeito aí!—dando a entender que fora o autor da tragédia simulada.
 Os pescadores assustados com a revelação recolheram as redes e tarrafas botaram num saco fizeram um sinal da cruz e desapareceram pela mata.
—Nunca mais apareceram por aqui, Pareia! Foi um santo remédio!—completou ele sorridente.
Nós nos divertíamos à bessa com a narrativa do fazendeiro, com seu jeitão simplório e os trejeitos de caboclo acostumado à vida dura do campo. Durante todo o tempo não sentou um minuto sequer. A garrafa de argua ardente estava abaixo do meio, mas não demonstravam a mínima alteração. Tomaram a saideira e quando estavam retornando à lida do gado, o Alessandro o interpelou:
—Pareia, tem alguma água pra beber por aqui por perto?
—Tem e muita !—respondeu já sobre a montaria.
—Água boa? –insistiu o Alessandro.
—Pareia, deve sê das boas, pois o gado bébe todo o dia e véve gordo! Naun reclamam não!
 Caímos na risada!
Quando fomos nos certificar da qualidade da água no local indicado pelo Óta o vaqueiro, ficamos assustados. A água era estagnada, barrenta cor de chocolate, totalmente inadequada para consumo humano. Mas nos divertíamos muito lembrando da frase: O gado bébe e véve gordo!
 No outro dia de manhã fomos conhecer a lagoa não muito distante do rancho, na companhia do Pareia. Ficamos encantados! Absolutamente majestosa, com sua floresta ciliar, a fauna abundante e todo seu ecossistema totalmente preservado, diferente do cenário aterrador que tínhamos presenciado durante a viagem, com grandes áreas de queimadas e derrubadas criminosas. Para todo o lado que se olhasse, divisava-se ao longe, dezenas de aspirais fumacentas que denunciavam a devastação sem nenhum manejo ou controle ambiental. As serrarias se proliferam tanto quanto as carvoarias por toda a região. O pressionamos de forma enfática para manter a sua posição na preservação da área, principalmente quanto à pesca predatória. Sentimos que ficou entusiasmado com os elogios à sua postura. Lamentamos muito não termos armado acampamento ao lado da lagoa. Até tentamos viabilizar a mudança, contudo não estávamos preparados. Concordamos que nas próximas viagens à fazenda, ficaríamos arranchados na beira daquele paraíso.
 Nos dias que se seguiram, volta em meia os comentários focavam a lagoa do Pareia. Falou-se tanto que, na nossa despedia o fazendeiro estendeu o braço amistosamente sobre meus ombros e disse:
—Pareia, si vocês gostaram tanto dessa lagoa e estão tão preocupado com ela, vô dá ela prá vocês! E de paper passado!
—Isso é uma brincadeira Pareia?
—Ô seu Roberto, eu num sô homi de brincá cum coisa séria! Vai ficá aqui do jeitinho que tá. Só quem vai pescá aqui são vocês!
 Já voltamos à região dos Carajás por duas vezes e ficamos sempre acampados ao lado da lagoa que continua intacta, aparentemente exclusiva para nosso deleite. A única coisa lhe traz contrariedade e discordância, mas de forma não muito radical, é o fato de soltarmos a maioria dos peixes depois de fisgados. Mas aos poucos nos parece estar cedendo aos nossos argumentos. Afinal sempre que deseja comer um peixe na companhia do seu vaqueiro basta dar uma só tarrafada na lagoa.
—É Pareia pelo menos do jeito que vocês pescam us peixe naum vão acabá nunca!
 Teorizou corretamente numa de nossas prozas. 

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