Arquivo da ‘Causos’ Categoria
Peixe bala
O rio Pindaré percorre km antes de sua desembocadura no Mearim. Outrora, a partir de sua nascente, era piscoso principalmente em peixes de couro como surubim, mandubé, lírio e outros bagres, além de grandes piranhas e pescadas brancas. Na época, sua mata ciliar de características amazônicas, exibia, em alguns trechos, exuberante paisagem verde com uma diversidade abundante de fauna e flora. Contudo, isso é passado. Com o advento da construção da Ferrovia dos Carajás a Amazônia Maranhense entrou em rápida e irreversível degradação. Um gigantesco e desastroso crime ambiental, acelerado pela ganância de madeireiros, a indústria da invasão e, fundamentalmente, pelo descaso das autoridades ambientais.
A ansiedade e a expectativa nos deixavam animados com a possibilidade de fisgar um grande surubim. O local do acampamento, previamente determinado, era próximo a uma comunidade quilombola situada não muito distante do rio e à margem da ferrovia, em uma região conhecida como Presa de Porco. Não mais de quarenta descendentes de escravos assentaram-se no local em busca de alguma terra para sobrevivência.
Seu Julião, pioneiro na região e líder da comunidade já era nosso conhecido. Um negro altivo de postura respeitável, alto e de semblante que denunciava as agruras e o sofrimento impostos pela árdua batalha pela vida, porém com um sorriso plácido e irradiante. Sua amabilidade, característica desse povo do interior, nos deixava muito à vontade. Quase aos setenta anos julgava ter encontrado um lugar definitivo para seu povo após longos anos de peregrinação perambulando por várias regiões do estado.
Depois de uma viagem de quatro horas por estradas vicinais de difícil acesso chegamos ao “Povoado dos Pretos”. Reconhecemos logo seu Julião, que tangia uns bodes para dentro de um pequeno curral. Veio ao nosso encontro e nos cumprimentamos. Conversávamos enquanto tirávamos as tralhas do carro. Informou-nos que o clima na região estava tenso por conta de uma invasão de sem terras em uma reserva dos índios Guajajaras.
— É mió ocêis ficá por aqui inté essa confusão acaba. A poliça tá lá embaixo na bêra do rio!
Ficamos assustados. Os índios guajajaras do lado direto e os invasores do lado esquerdo das margens do rio e a polícia, à sua maneira, tentando estabelecer a ordem. Achamos mais prudente aceitar o conselho de seu Julião e esperar a situação se acalmar.
Dona Joaninha acabara de servir um café quando ouvimos disparos vindo da direção do rio. Seu Julião apressou-se a sair em direção ao pátio da vila e gesticulando muito começou a gritar:
— Todo mundo pá dentro! Esconde essas criança! Ninguém sai enquanto eu num mandá!
Estava agitado e depois de se assegurar que todos estavam protegidos manteve-se de pé, ao lado da casa, procurando observar algum movimento nas margens do rio. Aproximamo-nos do velho líder preocupados querendo entender a confusão enquanto os tiros se sucediam. Ouvia-se perfeitamente a gritaria intercalada com os tiros, embora não se visualizasse nada da distância em que estávamos.
Seu Julião demonstrava nervosismo e preocupação. Afinal aquilo estava ocorrendo quase no seu quintal.
— Ocêis tumem cuidado mode uma bala dessa pode sair avuando e pegá a gente aqui.
Estava certo! A nossa curiosidade estava nos expondo a esse risco. Entretanto, não demorou muito se fez um silêncio prenunciando o que talvez fosse a trégua. Os quilombolas assustados e ressabiados, tanto quanto nós, saiam aos poucos do interior de seus ranchos.
— Será que acabou o tiroteio seu Julião? —Perguntei inquieto.
— Sei num sinhô. Vamu esperá mais um bucado!
Nisso ouvimos a zuada de um carro em alta aceleração. Era uma camionete com a caçamba cheia de policiais militares um dos quais parecendo ferido estendido que estava no colo dos companheiros com os pés para fora da carroceria. Em segundos desapareceram pela estrada deixando atrás uma enorme espiral de poeira.
Seu Julião chamou um dos filhos:
— Tu vai lá embaixo e repara o que tá acuntecendo. Vê se tem buia de gente por lá. Tomi cuidado!
Rapidamente um grupo foi reunido e seguiu em direção ao local do tiroteio para fazer um reconhecimento. Enquanto isso seu Julião nos explicava a origem do litígio entre os invasores e índios.
— Siô tem tanta terra por aí e esse povo qué invadi logo as terra dos índios. Aí é só prá dá merda mesmo!
Nos informou que a invasão estava sendo preparada há alguns dias. Os índios avisaram a Funai e esta por sua vez notificou a polícia da região.
O tempo passava lentamente e estávamos tensos e angustiados principalmente pelo desdobramento dos acontecimentos, pois pela quantidade de tiros disparados algo grave poderia ter ocorrido. Afinal não é sempre que nos vemos entre um tiroteio de polícia, sem terras e índios.
Repentinamente um dos rapazes apareceu ofegante com notícias do front.
Seu Julião o antecipou:
— Cuma é que tá lá?
— O pipoco foi feio mais num morreu nenhum cristão naum! Morreu o jegue de seu Ribinha que tava amarrado no capim, um poliça e um índio!
Apesar das circunstâncias rimos de forma comedida da naturalidade e ingenuidade do rapaz que prosseguia com o relato:
— Seu Ribinha tá lá injuriado, aguniadinho com o jegue, o índio caiu no rio, mas já levaram prá aldeia. O poliça foi no carro deles com mais dois sangrando igual bode capado.
— E os invasô? — perguntou seu Julião, aparentando mais tranqüilidade.
— Sei naum sinhô! Foram embora. Tavam tudo avexado. Seu Ribinha viu tudinho e disse que tem dois sendo carregado na rede cuns gimido que faiz dó!
Ficamos impressionados com a naturalidade com que encaravam o confronto e seu trágico final, principalmente pela forma de aceitar a morte do índio e do policial sem nenhum pesar ou consternação, equiparando-os ao jegue, que não era filho de Deus, num claro comportamento cultural que os demovem desses sentimentos. Algumas horas mais tarde a vila voltou ao normal.
Passado o susto e aconselhados pelo seu Julião, deixamos a poeira abaixar. Jantamos com a família, um bode no leite de coco, dormimos e no outro dia cedinho já estávamos na beira do rio longe do local do confronto. Mas essa é outra história, em outro capítulo.
A jumenta da maré
Cara Prá Lua cresceu na região sempre pescando com o pai e os irmãos para ajudar na sobrevivência da família como tantas outras crianças e adolescentes ainda hoje o fazem. Menino gostava de andar com uma turma de quatro ou cinco amigos de sua predileção, que juntos faziam suas traquinagens e perversidades típicas da idade. O mais chegado a ele era Bajorra, vizinho e quase irmão pelo qual até hoje nutre grande amizade e a recíproca é verdadeira. Num desses dias de vadiagem, com a lua ruim pra pescaria, saíram para a caçada de rolas num apicum nos limites da cidade, que na vazante formava uma extensa planície até o mangue. No caminho previamente combinado, juntaram-se a eles Derinho e Meu Grelo, garotos da mesma faixa etária, todos de bom relacionamento e de grande cumplicidade entre si. Cada qual com a sua baladeira no pescoço e uma boroca de pelotas de barro no costado, rumaram em direção ao campo, onde as rolas aos bandos se banqueteavam beliscando pequenos mariscos e insetos na maré baixa.
Já com o sol alto tinham nas borocas alguns pássaros abatidos por pelotas certeiras e decidiram, como sempre faziam, comê-los assados ali mesmo. Enquanto uns faziam o fogo e outros tiravam as penas e víceras das pobrezinhas, perceberam pela batida lenta e seca no solo, a aproximação de uma jumenta que procurava pastagem na parte seca do apicum, justamente onde estavam. O animal parou próximo ao grupo e começou a ceifar a erva salgada. A cada momento que erguia a cabeça com um tufo de capim do lado da boca, olhava para os meninos de forma curiosa e despreocupante. Aquilo era uma provocação! Uma jumenta novinha daquelas, sadia e toda ajeitadazinha andando por ali, só queria mesmo levá ferro. Bajorra o mais abusado e saliente da turma provocou:
— Embora esfregá essa jumenta? — enquanto pendurava as rolas num galho seco.
— Embora lá! — responderam quase juntos Derinho e Meu Grelo.
Cara Prá Lua tentou dissuadir os companheiros da empreitada, receoso que estava, mas foi voto vencido.
— Essa jumenta é do seu Ribinha e não tarda ele aparece por aqui e pode dá de cara cum nóis grudado na bunda da bicha. Isso num vai prestá! — tentando alertar os amigos.
— Qui nada Cara Prá Lua! É rapidinho! Vamu logo fazê uma escada com esse pé de pau — sugeriu Bajorra.
Apanhou um toro de madeira que, usado como degrau, facilitava o alcance na anca da jumenta na hora do revezamento do esfréga. Estava no comando e nessas horas a lealdade e a cumplicidade valem muito entre amigos e assim sendo, todos estavam juntos na mesma causa ainda que, Cara Prá Lua por mais que disfarçasse, mantinha-se um pouco relutante visto temer que o fato pudesse chegar até o dono da jumenta.
Bajorra mentor daquela estripulia foi o primeiro da fila. No entanto ao subir no apoio improvisado, a jumentinha deu um passo à frente e ensaiou uma carreira quase o derrubando. Praguejou contra o animal e segurou-o pelo rabo enquanto Cara Prá Lua, Derinho e Meu Grelo, a prendiam pelo pescoço evitando que saísse do lugar, para que Bajorra desse logo uma ferrada na jumenta.
— Aquéta aí sua sacana! — esbravejava enquanto tomava posição para nova tentativa. O esforço de nada adiantava, quanto mais a seguravam mais inquieta e desassossegada ficava a jumenta e isso se tornava um problemão. Em geral são calmas e tranqüilas e aquela agitação não era coisa que estivessem acostumados a administrar, por mais esforço que desprendessem. Desistir não seria a opção das mais dignas para a ocasião. Não era uma jumentinha dessas, sem experiência, teimosa que iria demovê-los do objetivo.
Subitamente, Cara Prá Lua agora já no clima da molecagem, teve uma idéia no mínimo original para não dizer genial. Derinho e Meu Grelo seguraram a jumenta pelo pescoço enquanto Bajorra e Cara Prá Lua a empurravam pelas ancas até a maré. Presa com as quatro patas atoladas na lama do mangue não podia sair do lugar, o máximo que conseguia era mexer a cabeça. Os quatro libertinos, também enterrados até as canelas no barro preto e pegajoso, dominaram com facilidade a jumenta que resignada e imóvel, se limitava a olhar para trás como se tentando entender aquela presepada. Todavia, não contavam com o inesperado. A maré subia rapidamente surpreendendo a molecada e a jumenta agora não podia sair do lugar. Estava literalmente atolada, estancada na lama. Puxaram-na pelo rabo, pela cabeça e nada! Não se movia um centímetro sequer. Nesse momento deram conta da encrenca e o desespero começou a inquietá-los. A maré continuava a subir e em pouco tempo o pobre animal estaria submerso, afogado de forma estúpida e covarde. Apesar de tudo, não iam permitir que isso acontecesse. Isso não!
Bajorra sugeriu uma idéia. Seu tio Zé Berada, certa ocasião liderou uma operação de salvamento em situação idêntica, de uma bezerra búfala. Lembrou-se dos detalhes e arquitetou o plano. Rapidamente teceram umas embiras forte de talo de carnaúba, abundante no apicunzal, circundaram o ventre da jumenta até o costado e por dentro, atravessaram um cambão comprido com o qual poderia alavancar a criatura na tentativa de virá-la na posição contrária e ajudá-la a sair do atoleiro. O esforço era brutal e se angustiavam à medida que a água da maré se aproximava da cabeça do animal. Após cada fôlego retomavam as posições da operação. Dois de cada lado tentando suspender a jumenta pelo laço que, como se compreendendo a tragédia eminente, começou a se mover freneticamente de tal forma que os moleques sentiram-se mais otimistas e aliviados. A maré continuava subindo. O animal aflito levantava a cabeça e o plexo na tentativa desesperada de safar-se da armadilha. O movimento desesperado e a corrente mais forte das ondas começou a diluir a lama grudenta facilitando o movimento do animal que, sincronizado com a força dos quatro, conseguiu virar-se e chegar à terra firme. A euforia era grande e o sentimento de alívio maior ainda. A jumenta toda espargida de lama, saiu troteando em direção ao campo seco, desaparecendo entre as carnaubeiras. Fora aliciada, humilhada e quase vítima de afogamento e tudo que queria naquele momento era manter maior distância possível daqueles sádicos.
Os quatro respiraram fundo, livraram-se da lama fétida da maré e voltaram ao local do fogueira quase apagada. Reacenderam o fogo, lavaram os pássaros e prepararam o assado. Tudo não passara de um grande susto que iria servir de aprendizado. Coisa de mininu espríto de porco diriam hoje.
Sentados em torno da fogueira começaram a rir e fazerem piadas entre si sobre a ocorrência. Cara Prá Lua olhou para os companheiros e resmungou:
— Eu num falei que isso num ia prestá?
— Nunca mais nóis vai ferrá essa fela da mae! Num qué colaborá vai se fudê! — decidiu Bajorra.
— A jumentinha do seu Vádo é mais mansinha e jeitosa, já conhece nóis e vem num estalá dus dedos! Cum ela num tem erro! — arrematou Derinho.
Nisso Meu Grelo, olhando para o lado, chama a atenção dos companheiros.
— Qui merda óia que vem vindo aculá!
Era seu Ribinha o dono da jumenta, que se aproximava do grupo carregando um laço enrolado na mão.
— Essis mininus num virum uma jumenta novinha pastando por aqui naum?
— Vimu naum sinhô seu Ribinha! — responderam apressados.
— Mas se virem pode levá ela lá pra casa que lhes dô um agrado!
— Tá bão seu Ribinha! Dêxa cum nóis!
O caboclo recusou gentilmente uma banda mal assada de uma rola oferecida por Cara Prá Lua, passou a mão na cabeça do Bajorra enquanto tomava o rumo de casa e elogiou:
— Êta mininus bãonzinhus! Inté mais intão!
— Inté mais seu Ribinha!
Bajorra e Cara Prá Lua são nossos companheiros de pesca na Ilha da Macacoeira.
O filhote de Guará
Dona Antera fazia as últimas recomendações enquanto lavava as mãos em uma cuia grande à luz fraca do candieiro esfumaçante. Parteira de muitos atributos e famosa em toda a região, não se lembrava mais de quantas crianças teriam vindo ao mundo com o seu auxilio. Era madrinha de pelo menos a metade daquele povo mais novo. Leiga mas competente. Entretanto, tinha alguns conceitos práticos que de vez em quando lhe traziam problemas no trabalho de parto, como introduzir pedra de sal bruto na vagina das coitadas para o dilatamento. Esse recurso era esporádico, no entanto e não raro, causava hemorragia e traumas à parturiente e ao rebento.
Chico Chaga, moço novinho e de boa índole, pescador de muitos predicados, mas extremamente ingênuo, estava do lado de fora do casebre rodeado de amigos e curiosos. Pitava inquieto um porronca de fumo picado e não podia evitar a preocupação e a ansiedade, afinal, esse negócio de sair de carreira atrás de parteira era experiência que ainda não lhe tinha sucedido. Já tinha sim, em várias ocasiões, participado das rodas em porta de barracos onde sempre se reuniam quase todos os pescadores do povoado à espera do primeiro choro e o “mijo” de uma nova criança. O pai sempre tinha uma garrafa de “tiquira” para a ocasião. Essas notícias correm como o vento leste. Comunidade pequena, concentrada e basta alguém mandar chamar a parteira que todos ficam sabendo que a hora chegou.
A lua já ia alta e o ajuntamento dos curiosos e amigos ia aumentando na porta do rancho. Mulheres se dispondo para qualquer ajuda e crianças fazendo algazarra na rua arenosa. O sinal para servir a tiquira era o choro do vivente, que para desespero de muitos estava se alongando demais. Zé Carnaúba, arrastador de camarão “dos bão”, impaciente e como uma secura danada, arriscou uma piada:
— Esse mininu tá é de rosca é?
— Vai vê é fio de jegue — completou outro gaiato.
As gargalhadas sucederam-se, porém, de forma comedida. Chico Chaga não reagiu. Era acostumando com essas fuleragens e logo estava mais concentrado ao lado da janela, tentando ouvir alguma coisa que pudesse sinalizar o trabalho de parto.
Só as mulheres tinham permissão para espiar dentro do quarto, de forma que as mais curiosas sempre saiam à rua dando notícia quase sempre com a mesma expressão: “Vixê o bucho de Gracinha tá prá espocá”
No quarto fora improvisada uma cama no chão de terra batida. A rede com mais alguns trapos servia de colchão onde estava deitada Gracinha com as pernas abertas em forma de forquilha e com a cabeça no colo da mãe, Dona Raimundinha. Mordia os lábios inferiores e gemia muito. Dona Antera ajoelhada entre as coxas da moça, fazia massagens na barriga comprimindo-a repetidamente. As contrações iam aumentando cada vez mais.
— Ai meu Deus dói muito, ai ai ai, acho que vô murrê! Eu vô murrê!
— Morre não muié, respira e bota força nessa coisa, quando tu tava na sacanagem com o Chico achô bão num foi? Agora agüente! Faiz força! Faiz força que tá saindo! Si cagá naum liga naum!
Passaram-se alguns minutos, que para Chico Chaga foram uma eternidade. Era angustiante, mas o choro fino e estridente ouvia-se até a rua. A comemoração foi com muita zuada, principalmente pelos homens do lado de fora. A molecada de pés descalços que molestava com pedras e paus dois cães engatados na esquina, com outros tantos ao redor, voltou fazendo a maior algazarra, muitos sem entender o motivo daquela farra.
Esse choro tinha gosto de tiquira.
— Pégo a tiquira Chico? — era Pedro Guaíba com as mãos já trêmulas de tanto esperar pela “mardita”.
— Péga lá enrriba da mesa!
Chico Chaga ainda não tinha relaxado e ficou escorado na porta da frente esperando notícias.
— Vixê nossa Sinhora, que arrumação é essa?
Chico reconheceu a voz de D. Raimundinha, a sogra. Foi tomado por um impulso que quase o fez adentrar ao quarto.
— O qui é qui foi D. Raimundinha?
— Nada não Chico! Se assussegue homi!
A sogra dissimuladamente começou a falar com a filha enquanto D. Antera dava o primeiro banho do recém nascido. Ao sair na pequena ante sala do rancho Chico perguntou:
— É o que D. Antera?
— Mininu homi! Mais um prá mulestá as menina de famía!
Só assim conseguiu se acalmar e voltar ao meio da turma que continuava fazendo farra a pretexto de comemoração.
— Chico, cuma é qui é! Acabou a tiquira! — gritou Nonatinho balançando a garrafa vazia no ar.
— Vá lá na quitanda de seu Mané Cacinba e pega mais duas garrafas.
Não tinha tomado nem um gole ainda por conta da ansiedade e agora ia à forra. E certamente duas garrafas eram coisa só prá começo, porém, não se preocupava muito visto que nessas ocasiões nunca falta alguém prá dividir despesas dessa natureza.
Brejeira, capenga de um pé por conta de uma picada de cobra mal benzida e já melado de tiquira, apareceu com uns foguetes “três tiros” que guardava em casa desde a última visita de uns políticos em campanha. Conseguiu surrupiar alguns e danou a soltá-los na frente da casa.
D. Antera saiu prá fora como uma fera. Soltava fogo pelas ventas e foi logo descarregando:
— Quem é fio de uma égua que tá espocando fuguete aí? Num tão vendo que tem mininu novo drumindo? Ceis enfiam essas p… no cú e param de fazer zuada. O mininu já nasceu, oceis já tumaram o “mijo e tá bão pegá o rumo de casa! — a austeridade de D. Antera impressionava. Logo era muito respeitada na região e o melhor mesmo era atender a parteira. Sabe-se lá quando um deles iria precisar de seus préstimos novamente.
A farra da Rodada de tiquira foi dada por encerrada naquela noite.
Ficou no alpendre da porta até todos dispersarem-se. Encarou Chico Chaga com olhar suspeito e o intimou:
— Agora tu póde entrá e vê teu fio!
Chico Chaga não escutou.
— Tu num vai vê teu mininu não homi? — esbravejou Dona Antera reiterando a ordem.
Chico Chaga, absorto que estava ainda pensando na observação que fizera Dona Raimundinha, a sogra, logo que nascera o menino, sobressaltou-se.
— Vô sim sinhôra! — saiu ligeiro acompanhado Dona Antera.
Entrou no quarto e deparou-se com Gracinha, agora deitada na rede armada com o filho no colo envolto a panos limpos e mamando com entusiasmo. Dona Raimundinha passava a mão de leve nos cabelos da filha.
— Oiá aqui Chico o nosso fio! — Gracinha descobriu levemente a cabeça do recém nato para o marido olhar.
— É macho num é?
— E num e?! Espia isso, benza Deus! Isso que é um macho fogoso!
— Num tá muito esbranquiçado naum Dona a Antera?
— Tá naum homi. Quando nasci é assim mesmo!
— A senhora agarante?
— Agaranto sim sinhô! — respondeu Dona Antera sem se preocupar como seria resolvia, futuramente, essa questão de paternidade duvidosa.
— É a luz do candieiro que clareia muito — adiantou-se Dona Raimundinha tentando desfazer a dúvida.
— Posso pegá?
— Ainda não! Tá com o espinhaço muito molinho, só quando tivé mais espertinho! — precavida Dona Antera estabelecia suas regras.
Chico Chaga ficou escorado na rede um pouco e logo saiu prá fora. Olhou para o céu estrelado e suspirou fundo.
O silêncio reinava novamente no povoado. Dava para ouvir as ondas da maré alta batendo no nos pilares do trapiche e esborrifando nos cascos dos barcos. O vento salgava o ar misturando o cheiro agradável do mar que refletia a luz prateada da lua já caindo no horizonte. Paragens remotas assim inebriam nossa alma e conseguem aflorar a sensibilidade e nos remetem à realidade do País, desconhecida pela maioria dos brasileiros. A vida serena e acomodada que passa lentamente sem nenhuma objetividade, privada com naturalidade das necessidades básicas do ser humano, nos leva a refletir sobre uma possível inversão de valores. Serão eles os miseráveis excluídos e desassistidos pelas autoridades constituídas, que trabalham duro, sob sol, chuva e vento, sem conforto, escolas, saúde, vivendo alheios ao resto do mundo ou nós que pagamos altos tributos para desfrutar das benesses da sociedade moderna, induzidos que somos pelo consumismo? Não se comprometem com carnês, cartões, financiamentos, impostos, empregos ou qualquer outro compromisso que possa tirar-lhes aquela alegria que é marca registrada estampada nas faces curtidas pelo tempo e pelo sol. Sempre que convivo com essas comunidades de pescadores, pondero sobre isso.
No dia seguinte, ainda escuro, Chico Chaga é acordado aos gritos pelo companheiro de pesca Mundico. Tinha dormido mal a noite na pequena sala. Dona Raimundinha e Dona Antera armaram suas redes no quarto com Gracinha. Parteira que se preze leva a própria rede e acompanha a parida por vários dias, cuidando incondicionalmente de tudo.
— Qui qui é Mundico? — respondeu Chico Chaga sonolento.
— Simbora homi que a maré num ispera pescadô não!
— Mais assim nu cagá dos pinto?
— Hum hum tu tá leso é, já vai é amanhice! Ou tu vai ficá babando mininu novo?
Meio grogue pulou da rede vestiu a bermuda e uma camisa velha e rasgada e seguiram até o porto.
Já com a caçoeira na água e o dia claro comentou com o companheiro:
— É Mundico, agora tenho que trabaiá o drobo. A famia aumentô, vai aumentá tumém a dispesa!
— Tu nem sabe da dispesa Chico. Mininu novo num é como nóis naum que passa só no xibéu! Si bem que naum demora muito logo logo póde tumá papinha de farinha e caldo de peixe.
Mundico sabia do que estava falando. Tinha quatro filhos e a esposa já estava prenha outra vez.
Houve alguns minutos de silêncio e enquanto Chico Chaga secava o fundo da canoa com uma caneca feita de Pet cortada ao meio, Mundico perguntou indiscreto:
— Ritinha de Zé Preá disse que o mininu é branquinho feito uma galça!
— Num sei disso não! Dona Antera disse que quando nasce é assim mesmo a despois vai tumando cor. —
Chico Chaga tentava disfarçar a observação, contudo, era visível a sua contrariedade.
— Tô aqui matutando Mundico, fio de Camurim parece Camurim, fio jegue parece jegue, fio de bode parece bode, fio de mero é igualzinho o mero, que diabo que esse mininu é tão diferente os bicho tudo qui quando nasce são paricido com os pai?
— Dona Antera tá certa homi! Vai crescendo vai pegando cor — completou Mundico percebendo a bobagem que fizera. — Tu tá é pensando besteira. Tu já viste fióte de urubu?
— Naum!
— E de guará?
— Tumem naum!
Então siô… nenhum é parecido com o pai. Deixa de história. Isso vai sê um pescadô dos bão! Tali quali o pai!
A amizade de longos anos desfrutada com recíproca lealdade e confiança fazia Chico Chaga, do alto de sua ingenuidade, confiar nas palavras do amigo o que o deixava mais calmo e relaxado.
— Óia Chico, lá naquela siribeira! — gritou Mundico apontando o dedo para o manguezal.
— O qui qui é?
— Tu naum tá vendo naum? O fióte de guará, branquinho branquinho?
— Óxente! Num é que é!
— Num ti falei! Óia lá dois… ainda nem avua!
— Mundico tu acabou de tirá um peso da minha consciência, num é que é verdade! Marrapá, eles nasci bem alvinho num é?
— É Chico! Si bem que tem uns qui naum muda a cor naum! Deve ser coisa de Deus! Chico meu cumpanheiro, vô ti dizê uma coisa, ás veis a gente tem que aceitá essas encomenda de Deus! É graças a ele que nóis véve nesse mundo — Mundico filosofava parecendo saber de alguma coisa que fugia à compreensão de Chico Chaga, entretanto, parecia satisfeito com a missão de ludibriar o amigo e principalmente com a condescendência do amigo.
— Tu tá certo Mundico, o que Deus dá prá nóis é sagrado.
A maré fora boa e o pescado farto. Venderam um bocado no porto e levaram um côfo cheio de guribús, uritingas, bandeirados e corvinas para casa, cada qual com sua partilha.
Chico Chaga chegou à casa alegre e fazendo muita zuada. Sentia-se muito melhor desde que saíra para a pescaria.
— Dona Antera, Dona Raimundinha, óia os pêxe mode fazê o cuzido! E a senhora Dona Antera, tire logo uma muchiada mode mandá lá prá sua casa. Pode tirá quanto quizé da marca que quizé!
O côfo de peixe fresco exalava cheiro forte que impregnava o interior do humilde rancho, como deve ser mesmo o rancho de um pescador. Fora mesmo um dia de sorte!
— E Dona Antera, cuma é que tá meu mininu?
— Tá muito bem! Inté parece um anjinho.
— Vô lá vê meu bichinho!
— Então lave essas mão primeiro — ordenou a parteira cuidadosa.
Chico Chaga pegou uma cuia e tirando água da cacimba rasa, banhou-se rapidamente. Entrou no quarto numa carreira desenfreada e foi logo falando baixinho:
— Cadê meu fióte de guará? Cadê meu fióte de guará? Papai já chegô!
— Tá com a mulesta Chico, que diabo é isso de fióte de guará?
— É o meu fiótinho de guará Gracinha. — encostou os lábios na testa do menino e o beijou carinhosamente.