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Zé Rosa e a caçada de Paca
Estávamos, eu o Alessandro, o Juba e o Guiga, acampados às margens do rio Carú, na reserva biológica do Gurupi, extremo oeste da Amazônia Maranhense, preparados para uma permanência de uns dez dias na região. A viagem, de dois dias navegando os rios Pindaré-Mirim e Carú, apesar de cansativa, tinha sido simplesmente espetacular. Era só o início de uma grande aventura. O lugar é maravilhoso e a exuberância da floresta amazônica permite a rara possibilidade da perfeita interação com a natureza. Apesar de local ainda deserto e extremamente adverso, tínhamos como vizinhos mais próximos os índios Awá/Guajá da aldeia Cayuáua, mas recebíamos esporadicamente alguns nativos da região que sem nenhum esforço subiam o rio por várias horas a remo para nos fazer uma visita. Na sua maioria, vinha por curiosidade ou para obter algum material de pesca, como anzóis e linhas, tomar um café, tudo muito raro naquelas bandas.
Certo dia, estávamos todos no acampamento num daqueles momentos preguiçosos e relaxantes, quando um ribeirinho já nosso conhecido, desembarca com algumas melancias para nos presentear e na sua companhia um senhor de postura simplória típica do sertanejo da região. Foi nos apresentado como Zé Rosa, conhecido e destemido caçador da região. Nos cumprimentamo-nos e em seguida oferecemos uma bebida, um vinho de catuaba, que costumamos levar apenas para essas circunstâncias. Conversamos algum tempo sempre falando sobre a região. Parecia muito à vontade entre nós e sem muita cerimônia, após o segundo gole, começou a contar alguns causos e, entre tantos, nos contou o seguinte:
Na região, um outro grande caçador, cuja alcunha não deixava dúvidas: Zé paca, estava pela primeira vez em toda a sua vida, enfrentando dificuldades na caçada de uma determinada paca. Seus cães exímios caçadores estavam o decepcionado. Zé paca os levava no carreiro da bicha manhosa, conseguiam localizá-la, persegui-la mas não a alcançavam. Era muito rápida na carreira pelo mato e, pós alguns minutos de perseguição, pareciam junto ao seu dono ofegantes e cortados por cipós, quase suplicando a desistência da infrutífera missão. As tentativas foram muitas e por vários dias seguidos. A paca, a essa altura famosa pelas redondezas, era muito rápida e sagaz, como um corisco zig zagueando pela vereda. Zé paca sentiu-se profundamente ferido no seu amor próprio e até um pouco humilhado. Afinal a fama de paqueiros dos seus cães era notória e percorria toda a reserva. Inconformado, pressionado, mas relutante, atendeu aos conselhos dos amigos. Um pouco constrangido, procurou o Zé Rosa, o nosso visitante. Zé Rosa dispensava apresentações! Seus dois cães eram mestres na perseguição de caças. Não havia nenhuma animosidade entre eles. Eram muito amigos e até compadres. Mas que ficava um clima desagradável, isso ficava! Mas Zé Paca foi logo ao assunto:
— Cumpadi Zé Rosa… — e narrou detalhadamente a história da paca que de tão astuciosa e veloz nunca era alcançada pelos seus cães. Zé Rosa escutou atentamente, soltou uma baforada do seu cigarro de fumo bruto, passou a mão carinhosamente sobre a cabeça de um de seus cães e com um pouco de desdém e empáfia, respondeu decisivo:
— Então vamu atráis dessa bicha agora!
Com um estalar de dedos chamou Carrasco e Sultão. Os dois cães magros, todavia, caçadores natos, até então cabisbaixos sonolentos, entenderam a mensagem com o balançar frenético dos rabos e imediatamente tornaram-se altivos e inquietos. Rumaram todos para o local da mata onde vivia a tal paca. No caminho, Zé Rosa reafirmava as virtudes dos seus cães.
— Cumpadi Zé Paca, manda cumadi. Nonata botá a panela nu fogo que rapidinho vamu cumê uma paca. Se Carrasco e Sultão num pegá a bicha, corto os bagos dos dois!
Chegando ao nicho da desafeta e, alertados pela ansiedade dos cães, Zé Rosa com os gritos de estímulos soltou-os. A carreira foi feia e o pipocar dos galhos, paus e cipós era ouvido de longe. Ficaram parados numa pequena clareira e sentados sobre os calcanhares e relaxaram. Os latidos que anunciavam a busca, repentinamente passou para o de localização e perseguição. (os latidos dos cães são diferentes para cada situação nos explicou ele). Zé Rosa, orgulhoso anunciou:
— Lá vem a bicha compadre si aprepare!
O barulho e os latidos aproximavam-se cada vez mais. Dito e feito, a paca passou a menos de três metros de onde estavam. Mas muito à frente dos cães. Naquela velocidade era impossível Carrasco e Sultão alcançarem-na.
— Óxente! Quê diabo é isso? Esbravejou Zé Rosa decepcionado. — e lá vinha ela novamente correndo em círculos perseguida pelos cães. Quase deitados ao chão, para tentar uma visão mais ampla entre as arvores e arbustos, puderam divisar sem nenhuma dificuldade uma cena inusitada e inacreditável.
— Vi com esses zóio que a terra há de cumê! — assegurou Zé paca empolgado prosseguindo com o relato.
Na carreira, a paca sempre que se via ameaçada pelo Carrasco e Sultão, já muito cansada, virava de costas num giro horizontal de 180º e continuava a correr sempre imprimindo mais velocidade. Ela tinha quatro pernas sobressalentes nas costas. Enquanto quatro pernas corriam, quatro estavam descansando. Essa foi a grande descoberta dos dois compadres. A princípio ficaram incrédulos e indignados. Mas Zé Rosa não se deixou abater. Chamou de volta Carrasco e Sultão que continuavam na perseguição. Os dois cães ofegantes com a língua para fora e com os corpos feridos no triscar de galhos e cipós ficaram em posição e deitaram-se aos pés do seu dono. Zé Rosa não titubeou. Sacou de seu facão rabo de galo e rapidamente cortou duas embiras de titica na árvore mais próxima e testou sua resistência com uma lapada num tronco ao chão e com a ajuda do compadre Zé paca, amarrou Carrasco e Sultão espinhaço com espinhaço. Um prá baixo outro pra riba, quatro patas no chão e quatro para cima.
— Agora quero ver a fia de uma égua escapá! — deu voz de comando e lá se foram os dois cães atrelados meio desequilibrados, porém rapidamente, adaptaram-se à criatividade do caçador e tomaram rumo mata adentro. Retomaram a caçada. Carrasco carregando Sultão de barriga para cima e pernas para o ar. Não demorou muito e desentocaram a paca. Zé Paca e Zé Rosa estavam em posição de fácil visualização e puderam notar perfeitamente quando a paca em velocidade virava revezando as pernas e desesperada percebia que os dois cães também o faziam num sincronismo perfeito. Não deu outra! A carrera foi curta. Antes que a paca desse o seu terceiro giro sobre si mesma, estava nas garras de Carrasco e Sultão. Juba o interpelou:
— Seu Zé Rosa, como é que os cachorros viravam no revezamento?
— Sei naum sinhô, mas que o desmantelo foi grande foi!
Ainda não tínhamos retomado o fôlego do acesso de risos. Não pudemos evitar. Zé Rosa soltou a última baforada do seu porronca, cuspiu de lado e muito sério nos perguntou:
— Oceis num tão achando que é mentira minha não?
— Quê isso seu Zé Rosa! Claro que acreditamos. É que a história, além de verdadeira é muito divertida!
Antes de nossa total recuperação, Zé Rosa de início a outra história hilariante, mas essa fica para a próxima vez. Até hoje, passado um bom tempo, rimos muito quando um de nós lembra-se do Zé Rosa e seus causos verdadeiros.
O Boto cor-de-Rosa, preto!
O Rio Curuá-Una é represado na altura dos limites da cidade de Santarém, no Pará, alguns quilômetros antes de desaguar no Amazonas, onde move as turbinas de uma hidroelétrica. Forma um lago imenso e extraordinariamente bonito e, alguns quilômetros abaixo, mantém-se mais estreito e com exuberante mata ciliar. Estávamos ali, próximos a uma guarita da hidroelétrica, na margem do rio, onde aguardávamos o Sr. Bernardo morador da região e credenciado a nos levar a uma pescaria. Não demorou muito, encostou com uma voadeira, emprestada que nos foi por um engenheiro da hidroelétrica, administrada pela CELPA, companhia hidroelétrica do Pará. Cumprimentamos-nos e seguimos rio abaixo nuns pesqueiros que só ele conhecia. As opções eram muitas, pacús, tambaquis, jaraquis, tucunarés, matrinchãs, aruanãs, pirarucus e outros espécimes da região amazônica. Pescamos o dia todo com bons resultados e, no final da tarde, voltamos ao ponto de encontro. Retornaríamos as pescaria na segunda feira. Como a voadeira iria ficar ali mesmo na guarita, a pedido de seu proprietário, demos uma carona a ele até sua casa, não muito distante.
Durante o dia, em meio a uma fisgada e outra, Sr. Bernardo contou-nos muitas histórias de suas andanças. O dia terminou com nossa amizade selada com um convite para comer um pato no tucupi, em sua casa no dia seguinte, domingo, o que foi prontamente aceito, mesmo não sendo nós, muito apreciadores de tal iguaria.
Ao nos despedirmos, reafirmou o convite:
—Então tá combinado, Sr. Roberto. Amanhã aqui em casa! Vou mandá a muié fazê o pato.
—Tá combinado Seu Bernardo. A que horas?
—Das dez horas em diante o Sr. pode chegá! Mas se quiser vir mais cedo tumém pode.
No domingo, na hora marcada estava eu lá. Sua moradia, humilde como as demais, ficava num pequeno povoado de no máximo umas dez casas esparsas à beira do rio que, naquela época do ano, exibia suas praias de areias brancas. Em quase toda a sua extensão, podíamos observar as crianças brincando na água e algumas mulheres lavando roupas e utensílios.
Ao ouvir o barulho do carro, veio sorridente e solicito nos receber. Tinha na boca, entre falhas, um dente de ouro que exibia com satisfação, como uma das lembranças de uma experiência mal sucedida no garimpo de Serra Pelada. Outra lembrança, que de certa forma também não evitava a exibição, era uma enorme cicatriz na barriga proeminente. Durante a conversa, afastou um pouco a camisa desabotoada e sem esconder um pouco de ironia lembrou-se do ocorrido:
—Isso aqui é traço de faca. Triscou de banda no bucho! Na hora que eu ia mata o cabôco, a poliça chegô! Cabra de sorte aquele! —vaticinou cobrindo o antigo ferimento.
Foi numa das muitas bebedeiras nos cabarés de Marabá nos tempos do garimpo. O seu preferido era o Recanto das Goianas. Bastavam algumas pepitas de ouro para sair da serra e buscar os encantos dos cabarés de Marabá.
—Era um raparigal bonito! Cheio de luzes e tapetes. As cadeiras eram estufadas, quando a gente sentava, chegava afundá a bunda! Tinha umas brancona do sul, o drobo do meu tamanho. Certa vez, uma delas veio logo sentando no meu colo e os colegas começaram a zombar. Fiquei desconfiado com tanta festa, mas a mué, muito cherosa, começou com saliência do meu lado, me beijando e se esfregando toda. Peguei logo naqueles peito branco e quando arriei a mão prá cariciar a priquita, ela deu um pulo e desatou a rir com os colegas. O fela da mae era homi! A zanga foi tanta que acabei dando um bógue nas venta do macho de mão aberta. Aí não prestou! Um cabra que eu não conhecia se doeu e puxou uma faca pra mim querendo defender o qualira. Aí o desmantelo foi grande!
—Mas não afetou nada por dentro?—perguntei por curiosidade
—Não! A lapada foi de lado, só triscou a peule, malemá!
Mas isso foi há tempos, agora tomou rumo. Entrou pra crença há alguns anos o que o fez mudar de comportamento. Nada que o faça um evangélico fervoroso e assíduo,todavia, defende suas convicções religiosas. Não anda mais atrás de rapariga e parou de beber e fumar. Esteve na ilha de Marajó tangendo búfalos por uns seis meses sem nenhuma recaída. Sem nenhum deslize. Só não deu certo mode a famía que não quis ir para a região e ele, sozinho, não podia ficar tão longe. Aproveitou que veio curar o espinhaço desmantelado de uma queda do cavalo, e não voltou mais.
—Agora sou homi séro. Com a graça do Senhor!
Sentamos frente à casa, sob uma sombrosa e agradável moita de açaí, nuns mochos de madeira com assento de couro cru, tipo uns tamboretes, feitos por ele mesmo.
—Isso aqui é de couro de veado mateiro. Dura a vida toda. Foi do último que matei! —lembrando de seu tempo de caçador.
Bateu na pele esticada e ressecada com os nós dos dedos para mostrar a resistência do assento. Após alguns minutos de prosa, caminhou para dentro da casa assuntá as quantas andava o cozimento do pato e voltou com uma foto amarelada e desgastada. Peguei com cuidado, pois a moldura estava se desfazendo, mesmo amarrada aos cantos com barbante. Lá estava ele sorridente, com um enorme pirarucu. Uma recordação de um pescador do sul que tinha acompanhado como guia numa pescaria no Curuá-Una há muitos anos atrás.
—Isso faz um bucado de tempo! Já peguei muito desses monstros! Agora é improibido, tão dizendo que tá acabando. Mas ainda tem muito deles por aí!
Tentei conscientizá-lo de que os muitos são poucos para a preservação da espécie e que realmente estão desaparecendo. Parece que por questão de educação e simpatia, concordou! Continuamos dissertando sobre a preservação da vida selvagem e a necessidade do controle manejado da natureza. A conversa parece ter ficado enfadonha para ele, pediu licença e voltou com a foto para dentro de casa para guardá-la. No retorno veio acompanhado de toda a família. A esposa Dona Quitéria, duas adolescentes de quatorze e quinze anos, outra de doze, a caçula de oito anos e único menino de sete anos. Não tínhamos percebido nenhum movimento dentro da casa que pudesse denunciar a presença de tanta gente. Mas a aparência de cada um deles justificava o comportamento no interior de casa. Estavam todos com os cabelos molhados e penteados e cheirando a perfumes comuns de odor enjoativo. Roupas limpas e chinelos nos pés. Obviamente, foram ordenados a arrumarem-se para a apresentação. Era o que estavam fazendo silenciosamente. Cumprimentamos um a um. Os menores nos beijam a mão, num gesto de aproximação respeitosa cultuada na região. Dona Quitéria de cabelos pretos longos devia estar usando o vestido com o qual freqüentava os cultos da Igreja. As duas adolescentes eram muito bonitas. Estavam com alguma maquiagem e batom, o que realçava bem a cor da pele bronzeada. Uma delas, a de quatorze anos, estava grávida. Não havia aparentemente, nenhum constrangimento por causa disso. Então perguntamos quando ia nascer o bebê.
—Acho que daqui a um cinco meis!
—Tá prenha, mas não tem marido naum sinhô! Adiantou-se a explicar o seu Bernardo.
—Mas hoje está assim mesmo seu Bernardo. É essa juventude moderna! Tentamos atenuar.
—Num foi isso não sinhô! É fio de boto! A mais véia já pariu. Vá lá dentro buscar o menino pro homi vê, fia! Determinou carinhosamente à mãe adolescente.
Já conhecíamos o fantástico folclore do boto cor de rosa um dos mais interessante e arraigado da cultura amazonense. Quando se aproximam das praias dos rios amazônicos onde as mulheres lavam roupas ou se banham, transformam-se em formosos rapazes e raptam as mais desprevenidas, devolvendo-as já grávidas. Mas ouvir a história ao vivo, do pai de duas vítimas, era algo realmente inusitado e até poético.
—Isso é raça de bicho saliente! Não pode ver a muiérada na beira dágua que já vem chegando. Tem que ter uma sempre vigiando a água mode vê se aparece algum boto! —justificando a situação.
—E aí, como que fazem quando os botos chegam perto? —arrisquei.
—Tem que sair na carrera e esperá eles ir embora! A muiérada dana a jogá pedra e pau e eles se vão.
Era difícil imaginar aquele caboclo viajado, com bons conceitos de moralidade, sem nunca levar desaforo prá casa, contando uma história dessas com tamanha naturalidade e convicção e, sobretudo, sendo o seu principal narrador. É muito freqüente, todavia, as meninas quando percebem a gravidez, de imediato nomeiam o boto como o responsável, na base da malandragem. Todos evitam especular detalhes. Apenas que foi o boto. Isso mostra o quanto a crendice popular é determinante na vida dessa gente. Alguns ficam desconfiados. Mas apenas desconfiados, evitando se aprofundar pelo assunto. Dessa forma, deduz-se que em suas mentes não se discute o fato de que dezenas de crianças nascem e crescem com essa pecha de filho de boto. São registrados como se fossem filhos dos avós em situação definitivamente normal.
—A muié vivia avisando! Cuidado com essas graças na beira do rio! Mas de nada adiantou. Vamu vê se essas outras piqueninha aqui num vai facilitá! —passou o braço pela cintura da caçula carinhosamente.
Nesse momento chega a filha mais velha com o bebê no colo. A mãe virou-se de lado mostrando a criança. Tinha seis meses de idade e estava dormindo. Curiosamente, sua pele era muito escura contrastando de forma suspeita com a do resto da família. De forma meio precipitada arriscamos:
—O boto, pai desse menino era preto seu Bernardo? Houve um momento de constrangimento pela observação inoportuna, mas felizmente aliviado pelo bom humor e a inocência do avô coruja.
—Essa marca de bicho dá de toda a cor seu Roberto! Só pra fazer maldade com fia alheia!
Em nenhum momento as meninas ou a mãe, esboçaram qualquer comentário acerca do assunto. Não ousamos nenhum questionamento muito menos uma argumentação. Tivemos vontade de satisfazer nossa curiosidade, apenas por conta da situação dos verdadeiros pais. Como se mantêm no permanente anonimato sem nunca assumirem a paternidade? Quando casam e suas filhas ficam grávidas do boto, como administram a ocorrência? E as mães, que tanto quanto os pais sabem perfeitamente que não foi o boto? Nunca revelam a farsa? Como podem manter essa fantasia por tanto tempo? Mas preferimos deixar tudo como estava. Afinal, a outra filha iria parir em breve um filho de boto! Seria mais um motivo de alegria para aquela família!
Não seria eu quem iria questionar ou discorrer sobre o absurdo embuste, fruto da criatividade do povo amazônico.
Dona Quitéria interrompeu a reflexão chamando-nos para o almoço. O pato no tucupi estava pronto e seria servido.