Peixe bala

O rio Pindaré percorre km antes de sua desembocadura no Mearim. Outrora, a partir de sua nascente, era piscoso principalmente em peixes de couro como surubim, mandubé, lírio e outros bagres, além de grandes piranhas e pescadas brancas. Na época, sua mata ciliar de características amazônicas, exibia, em alguns trechos, exuberante paisagem verde com uma diversidade abundante de fauna e flora. Contudo, isso é passado. Com o advento da construção da Ferrovia dos Carajás a Amazônia Maranhense entrou em rápida e irreversível degradação. Um gigantesco e desastroso crime ambiental, acelerado pela ganância de madeireiros, a indústria da invasão e, fundamentalmente, pelo descaso das autoridades ambientais.

A ansiedade e a expectativa nos deixavam animados com a possibilidade de fisgar um grande surubim. O local do acampamento, previamente determinado, era próximo a uma comunidade quilombola situada não muito distante do rio e à margem da ferrovia, em uma região conhecida como Presa de Porco. Não mais de quarenta descendentes de escravos assentaram-se no local em busca de alguma terra para sobrevivência.

Seu Julião, pioneiro na região e líder da comunidade já era nosso conhecido. Um negro altivo de postura respeitável, alto e de semblante que denunciava as agruras e o sofrimento impostos pela árdua batalha pela vida, porém com um sorriso plácido e irradiante. Sua amabilidade, característica desse povo do interior, nos deixava muito à vontade. Quase aos setenta anos julgava ter encontrado um lugar definitivo para seu povo após longos anos de peregrinação perambulando por várias regiões do estado.

Depois de uma viagem de quatro horas por estradas vicinais de difícil acesso chegamos ao “Povoado dos Pretos”. Reconhecemos logo seu Julião, que tangia uns bodes para dentro de um pequeno curral. Veio ao nosso encontro e nos cumprimentamos. Conversávamos enquanto tirávamos as tralhas do carro. Informou-nos que o clima na região estava tenso por conta de uma invasão de sem terras em uma reserva dos índios Guajajaras.

— É mió ocêis ficá por aqui inté essa confusão acaba. A poliça tá lá embaixo na bêra do rio!

Ficamos assustados. Os índios guajajaras do lado direto e os invasores do lado esquerdo das margens do rio e a polícia, à sua maneira, tentando estabelecer a ordem. Achamos mais prudente aceitar o conselho de seu Julião e esperar a situação se acalmar.

Dona Joaninha acabara de servir um café quando ouvimos disparos vindo da direção do rio. Seu Julião apressou-se a sair em direção ao pátio da vila e gesticulando muito começou a gritar:

— Todo mundo pá dentro! Esconde essas criança! Ninguém sai enquanto eu num mandá!

Estava agitado e depois de se assegurar que todos estavam protegidos manteve-se de pé, ao lado da casa, procurando observar algum movimento nas margens do rio. Aproximamo-nos do velho líder preocupados querendo entender a confusão enquanto os tiros se sucediam. Ouvia-se perfeitamente a gritaria intercalada com os tiros, embora não se visualizasse nada da distância em que estávamos.

Seu Julião demonstrava nervosismo e preocupação. Afinal aquilo estava ocorrendo quase no seu quintal.

— Ocêis tumem cuidado mode uma bala dessa pode sair avuando e pegá a gente aqui.

Estava certo! A nossa curiosidade estava nos expondo a esse risco. Entretanto, não demorou muito se fez um silêncio prenunciando o que talvez fosse a trégua. Os quilombolas assustados e ressabiados, tanto quanto nós, saiam aos poucos do interior de seus ranchos.

— Será que acabou o tiroteio seu Julião? —Perguntei inquieto.
— Sei num sinhô. Vamu esperá mais um bucado!

Nisso ouvimos a zuada de um carro em alta aceleração. Era uma camionete com a caçamba cheia de policiais militares um dos quais parecendo ferido estendido que estava no colo dos companheiros com os pés para fora da carroceria. Em segundos desapareceram pela estrada deixando atrás uma enorme espiral de poeira.

Seu Julião chamou um dos filhos:
— Tu vai lá embaixo e repara o que tá acuntecendo. Vê se tem buia de gente por lá. Tomi cuidado!

Rapidamente um grupo foi reunido e seguiu em direção ao local do tiroteio para fazer um reconhecimento. Enquanto isso seu Julião nos explicava a origem do litígio entre os invasores e índios.

— Siô tem tanta terra por aí e esse povo qué invadi logo as terra dos índios. Aí é só prá dá merda mesmo!

Nos informou que a invasão estava sendo preparada há alguns dias. Os índios avisaram a Funai e esta por sua vez notificou a polícia da região.

O tempo passava lentamente e estávamos tensos e angustiados principalmente pelo desdobramento dos acontecimentos, pois pela quantidade de tiros disparados algo grave poderia ter ocorrido. Afinal não é sempre que nos vemos entre um tiroteio de polícia, sem terras e índios.

Repentinamente um dos rapazes apareceu ofegante com notícias do front.

Seu Julião o antecipou:
— Cuma é que tá lá?
— O pipoco foi feio mais num morreu nenhum cristão naum! Morreu o jegue de seu Ribinha que tava amarrado no capim, um poliça e um índio!

Apesar das circunstâncias rimos de forma comedida da naturalidade e ingenuidade do rapaz que prosseguia com o relato:
— Seu Ribinha tá lá injuriado, aguniadinho com o jegue, o índio caiu no rio, mas já levaram prá aldeia. O poliça foi no carro deles com mais dois sangrando igual bode capado.
— E os invasô? — perguntou seu Julião, aparentando mais tranqüilidade.
— Sei naum sinhô! Foram embora. Tavam tudo avexado. Seu Ribinha viu tudinho e disse que tem dois sendo carregado na rede cuns gimido que faiz dó!

Ficamos impressionados com a naturalidade com que encaravam o confronto e seu trágico final, principalmente pela forma de aceitar a morte do índio e do policial sem nenhum pesar ou consternação, equiparando-os ao jegue, que não era filho de Deus, num claro comportamento cultural que os demovem desses sentimentos. Algumas horas mais tarde a vila voltou ao normal.

Passado o susto e aconselhados pelo seu Julião, deixamos a poeira abaixar. Jantamos com a família, um bode no leite de coco, dormimos e no outro dia cedinho já estávamos na beira do rio longe do local do confronto. Mas essa é outra história, em outro capítulo.

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Sobre o autor

Roberto Menks

 
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