Zé Bago e o touro do pareia

Voltamos ao Pará para outra pescaria na fazenda do nosso amigo Pareia às margens do rio Vermelho. Junto com o seu vaqueiro Óta, estava esfuziante.
A vacada fora manejada. para pastagens descansadas formadas por pequenas planícies, planaltos e vales verdejantes, de capim nutritivo e de muita sustança. As chuvas em abundância e, no tempo certo, foram uma dádiva da natureza como sempre, apesar das agressões contínuas e violentas a ela imposta sem piedade. Não se via mais as queimadas que precedia a derrubada da floresta, em gigantescas aspirais que cobriam o céu por dias seguidos. A região, próxima às encostas da Serra dos Carajás, no sul do Pará, com grandes extensões de pastagem e campos estava verdejante. O cenário era de uma paisagem cheia de vida demarcada por centenas de pontos brancos das silhuetas do gado pastando, contrapondo-se ao do período da seca, de aparência estéril, quase desoladora. Quinhentas rezes começariam a parir entre julho e outubro, quase que simultaneamente e isso, entre outras coisas, significaria trabalho duro, coisa para vaqueiro destemido, aguerrido e experiente. A tarefa penosa de, diariamente, revisar e restaurar cercas, ajudar partos complicados, apartar bezerros prematuros com defeito de nascença, arrumar ama de leite para os órfãos, vacinar e marcar recém nascidos, entre diferentes ocupações, levara o Óta a interpelar sem muito rodeio o patrão:
—Siô, a coisa tá arrochando! — foi direto e incisivo.
—A vacada tá parindo feito preá na roça e o trabaio tá drobado e tu agora não qué mais nada com a dureza, não vou dá conta naum sinhô! O aperreio é grande!
Reclamava com razão. Pareia vivia mais na cidade e até então, Óta estava dando conta do recado, porém com as vacas começando a parir, a situação estava mudando e isso o deixava preocupado.
Pareia relutou um pouco, mas concordou. Afinal não estava mais se dedicando à lida como dantes e também, pelo menos por ora, não abriria mão da vida boa e agradável da cidade, no meio do raparigal.
Na semana seguinte apareceu com um vaqueiro trazido lá das bandas do Parauapebas. Ainda muito jovem, contudo, bem recomendado por conhecidos. Pareia apresentou-o ao Óta e fez algumas recomendações enquanto mostrava de forma superficial a propriedade. Óta se deu por satisfeito com o novo colega, certo que de físico pouco atarracado, meio magro, mas nada que o descredenciasse para o posto. Vaqueiro tem dessas coisas, não é pelo tamanho que se escolhe.
—Conheço pião bão de lida na primeira óiada. —comentava com atributo de quem nascera na lida e revelando alguns quesitos para a conceituação:
—Pernas troncha, arqueadas, meio de rosca, modi a roseta segurá o vazio do animal, mão fortes, de macho, cabeça erguida e não pode tê cú seco, aí sim, reseste o baque de sela.
Pareia deixou os vaqueiros sós e retornou à cidade. Não houve formalidades na apresentação. Enquanto Óta apartava a montaria escolhida para o novo companheiro, para sem delongas iniciar o trabalho da fazenda, perguntou lhe o nome.
—Zé! —respondeu em monossílabo.
—E Zé de que?
—Zé Bágo!
Óta achou o nome no mínimo curioso, mas para ele bastava, visto que por aquelas bandas não era costume das pessoas terem nomes de pronuncia complicada e longa, Zé estava bom demais!
Passaram-se os dias e Zé Bágo, cada vez mais, demonstrava suas qualidades de bom vaqueiro. Ágil no laço, bom de galope e muito preparo em arrebanhar, manejar e tanger o gado. Óta estava satisfeito, além de tudo ganhara companhia permanente na casa da fazenda, onde andava muito solitário desde a partida do patrão. Certo dia, durante os preparativos para a castração de quatro novilhos pra engorda, confinados numa pequena baia, trabalho que também testaria o novato, Óta descobriu o significado da palavra Bágo que Zé trazia associado ao nome.
—Êi Óta, tu gosta de cumê os bágo dos bichu?
—Má rapáiz, como é tudinho! Dou uns pros cachorros e o resto passo na banha quente e misturo com farinha. — respondeu dando a receita.
—E tu Zé Bágo?
—Não perdo unzinho! Oiá só o nome, Zé Bágo, isso é modi a mania que tenho de apriciá muito os culhão do bicho! É frito, é na brasa, do jeito que vinhé!
—Então adespois assepára uns aí pros cachorros e aprepára o resto modi fazê o frito antes do escurecê. —ordenou o vaqueiro chefe.
O testículo do boi, após a castração, é muito disputado entre vaqueiros e cachorros nas fazendas pecuaristas da região. Os cães comem in natura, mas peões os transformam em iguarias preciosas. Os novilhos, de pouca herança genética ou aparência sem muito garbo, aos quais recai a triste sina, são submetidos a um tratamento de exclusão traumatizante, doloroso e rudimentar durante o processo. Não há nenhuma comiseração por parte dos vaqueiros, nenhum anestésico ou qualquer outro método que possa aliviar o trauma do animal, quanto muito, uma lavada rápida com anti-séptico no interior do escroto que, aberto a canivete, apresenta-se flácido e sanguinolento depois de extirpados os bagos. Óta garante que em poucos dias estão pastando e com o ferimento cicatrizado:
—Ficam parecendo umas nuvia fresca de tão manso. É só não descuidá modi num dá bicho. —esclareceu com sapiência.
Terminada a castração e após as recomendações, Óta deixou Zé Bágo finalizando o trabalho de confinamento dos animais e foi reparar uma vacada prenha em outra pastagem. Retornou já no fim da tarde, tirou a sela da montaria ofegante, tomou um banho de cuia rápido e aproximou-se de Zé Bágo:
—Tô brocadinho de fomi! Fritô os bágo? —perguntou ansioso e esfomeado.
—Já tão preparadinho, na farinha. —respondeu-lhe o cozinheiro improvisado.
—Vixê, deu foi muito! Tu não deste nadinha pros cachorros?
—Dei nada naum! Os morto de fomi fizeram foi roubá antes que eu desse fé. Óta, analfabeto de pai e mãe, mas bão de conta de cabeça estava desconfiado daquela história. O resto da subtração não batia com sua equação. Sagaz, inquiriu o novato:
—Roubaram quantos?
—Quatro bágo!
—Tu tá mim enrolando homi! Aqui tem seis bágo, se roubaram quatro tinha que tê sobrado só quatro—contestou enquanto recontava os testículos mergulhados na farinha, separando-os com um garfo.
—Tu não sabes contar naum? Os cachorros roubaram num foi dois? Então? —meio desconfiado e sem jeito, Zé Bágo justificou-se:
—Sabe o que é Óta, esses ladrão roubaram quatro bagos, eu achei que a sobra era pouca modi fazê o frito e capei aquele outro novilho do curral de lá, aquele metido a besta!
—mae que pariu Zé Bágo, tamu fudido! Tu é louco é? Capô o boi que o homi escolheu modi cubri, as vacas pro ano, seu fio de uma égua! Tu vai ter que pagá o nuvio de estimação do patrão! Inté nome já tinha!
—Num sabia naun sinhô que era prá reprodutô!
—E agora? O que é que nóis vamu fazê abestado?
—Ué, vamu cumê! E vamu que tá esfriando!—respondeu Zé Bágo, calmo, não demonstrando nenhum remorso. Óta apanhou o prato em silêncio, serviu-se de uma porção de arroz requentado com feijão de corda, dividiu a farofa de bagos com o companheiro e balbuciou pensativo:
—É, o jeito! Mais que tamu fudido tamu!
Sentaram-se no mocho de madeira com os pratos na mão e começaram a comer. Os dois cães, ruins de guarda, mas bons de lida com o gado, estavam deitados ao lado com olhos fixos nos pratos dos vaqueiros. Zé Bágo os mirou bem, bateu o pé no chão ameaçador e resmungou:
—Dois ladrão féla da mae! Tinha que roubá os bago dos boi!
Tentava induzir o Óta a acreditar que a culpa da desgraceira poderia perfeitamente recair sobre os dois pobres cães.

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Sobre o autor

Roberto Menks

 
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