Pareia e João Teimoso

A pescaria era um objetivo antigo, mas fora planejada às carreiras. Fomos acampar no rio Vermelho, no Pará, próximo a serra dos Carajás na Amazônia paraense. Tínhamos boas referências da piscosidade do rio, todavia, nenhuma indicação da estrutura para acampamento. Chegamos a Eldorado dos Carajás e em seguida, na companhia do Walter, morador local e acostumado a pescar na região e que se propôs a nos acompanhar na aventura, fomos para uma fazenda cortada pelo rio. No caminho, meio apreensivos perguntamos ao Walter se não tinha nenhum problema em pescar em terras alheias. Respondeu-nos que era amigo do proprietário e não tinha nenhuma restrição apesar de não saber exatamente o local que nos levaria para acampar. Depois de algum tempo, já na fazenda, conseguimos divisar ao longe um rancho aparentemente desocupado. Foi uma dádiva. Estava abandonado. Sua estrutura precária, mas aparentemente bem seguro na sua cobertura de palhas de palmeira. Para nós estava ótimo! Num rápido mutirão conseguimos fazer uma limpeza no rancho que estava servindo de abrigo para o gado, e descarregar a tralha toda. Acendemos o fogo e improvisamos algumas prateleiras e ganchos para redes e o local ficou perfeitamente adequado às nossas modestas exigências. Fizemos uma rápida merenda e fomos pescar.
 No dia seguinte de manhã, estávamos ainda no rancho preparando a nossa saída para o rio, quando recebemos a visita de Sr. Tavico e seu vaqueiro. Chegaram montados em dois burros baios ofegantes e inquietos. Apearam e entraram no rancho. O Walter nos apresentou ao proprietário da fazenda. Sem isso não seria possível diferenciar o fazendeiro do empregado. Estatura mediana, encorpado, cabelos grisalhos dos seus cinqüenta e tantos anos e semblante bonachão. Vestes rasgadas e um chapéu de abas largas e já bem surrado na cabeça, foi logo se enturmando. Moravam sós na sede da fazenda cuidando das criações e dos afazeres domésticos. Censurou-nos por não termos lhe procurado para indicar um local mais confortável para ficarmos, pois na fazenda tinha vários ranchos em melhores condições. Preferimos ficar ali mesmo. Alegre, fala rápida e quase ininterrupta, nos envolveu de tal forma que parecia nosso antigo conhecido. Alessandro, Juba e Guiga se entusiasmaram com a figura ímpar e começaram a especular sobre a piscosidade do rio Vermelho. Alertados que fomos pelo Walter, tínhamos levado umas garrafas de cachaça 51. Era a preferida deles e antes de nossa partida, fez questão de nos mostrar a sua torre ao ar livre, com mais de trezentas garrafas de cachaça vazias simetricamente empilhadas, que guardava como suvenires. Era o que ele chamava de estáuta, referindo-se ao que julgava ser parecido com uma estátua.
 Era ainda de manhã, mas o Guiga arriscou:
—Seu Tavico, não quer tomar uma 51 prá rebater o calor?
—Tu tá brincando! Tem aí a mardita?
—Temos!
 Incontinente, com os olhos brilhando, pegou o copo e serviu-se. Seu vaqueiro o seguiu numa dose generosa, deixando antes atirado ao canto, o gole do santo.
—Vixê! Essa é da boa!—passou o dorso da mão calejada pela boca enxugando os lábios, cuspiu do lado, ficando aparentemente mais animado, e prosseguiu:
—Pareia—é o pronome que usa para tratar todas as pessoas, sem nenhuma exceção, deixando claro que podíamos também, chamá-lo de Pareia—isso aqui tem peixe de toda marca!
 E aí discorreu sobre os espécimes e seus tamanhos. Revelou-nos a existência de uma lagoa, dentro de suas terras, que na época da monções entram centenas de peixes de várias espécies, incluindo o pirosca (pirarucu) que ficam aprisionados até o ano seguinte. Ele proíbe terminantemente a pesca predatória ou sem sua autorização. Quer preservá-la! Todavia, precisou colocar um vigia para assegurar que suas ordens fossem cumpridas.
—Pareia e aí, —prosseguiu ele —botei um vigia na lagoa pra arrepará os peixes, mas o infeliz começou a vender os piroscas e tive que mandá o cabra safado embora!
—Como é que ele fazia com os piroscas? —perguntou Alessandro enquanto ajeitava o fogo no chão.
—Pareia, o féla da mae deixava os pescadô pegá os pirosca de mais de cem quilos na rede, por dez ou vinte reaus.
 Não tendo alternativas para evitar a pesca desautorizada e predatória, ficou ele próprio mais o seu vaqueiro, revezando a vigilância. Mas era complicado. A lida com o gado durante o dia os deixava exaustos além do que, tinham que cuidar da própria bóia, e a noite os invasores aproveitavam à falha na segurança. Preocupado, não se fez de arrogado, acompanhado do vaqueiro, foi até a beira do lago, no local de melhor acesso onde era mais comum à presença de pescadores, e juntos, fizeram uns amontoados de terra, simulando umas sepulturas de cova rasa. A garrafa de cachaça e o copo ficaram sobre um tronco cortado que servia ao propósito de uma pequena mesa, desde o primeiro gole. Calmamente serviu-se de outra dose, estalou a língua e acrescentou:
—Essa tá descendo macio! —como se nunca tivesse tomado uma cachaça. O vaqueiro sempre o acompanhava.
—Pareia—continuou ele arrumando o chapéu de abas largas com a borda suada—como eu dizia, fizemos uns tumus (túmulos) de terra, bem ajeitado, com uma cruiz de madeira arrumadinha. Na boquinha da noite nóis fumo pra lá e acendemu umas velas encima das covas. Aquilo ficou bonito Pareia! De longe parecia um monte de zóio de jacaré encandeado, tudo alumiadinho!
 Ficaram de tocaia e aguardaram um pouco, torcendo para que naquela noite, os ladrões de peixes retornassem.
–Pareia não demorou muito, nóis escutamu uma zuada de gente, eram três safados chegando de mansinho. Quando estavam preparando as tarrafas, nóis chegamu de veiz.
—Tão dando uma pescadinha aí siô?—perguntou o fazendeiro abordando os invasores de forma intimidadora.
—É tamu tentando aqui—respondeu um deles assustado com o flagrante.
—E pediram prá quem?
—Pidimu prá ninguém naum sinhô! —falou aperreado o que parecia ser o chefe.
—Isso aqui tem dono, e é improibido entrá aqui prá pescá!
—Nóis num sabia naum sinhô!
 A conversa começava a ficar meio tensa e os pescadores clandestinos constrangidos, procuraram amenizar a situação. Tinham visto os tumus já na chegada, e um deles querendo desviar o assunto na tentativa de acalmar a situação, perguntou:
—É de cristão essas cóva aí siô?
—É sim sinhô! —respondeu de pronto o fazendeiro.
—E quem são os finados?
—João teimoso e Zé teimoso! —Pareai era dono da situação e tinha a resposta na ponta da língua.
—João teimoso e Zé teimoso?
—Sim sinhô!
—Nunca vimu falá! Cuma é que faleceram os finadu? Mode que? —arriscou o que estava com a tarrafa na mão.
—Di teimosia, di teimosia!—retrucou Pareia, batendo de leve com um facão no cano na bota, de forma intimidante.
—Andavam por aqui pescando e eu sempre aconceiando, aconceiando, dizendo que não podia pescá. Eram muito teimoso e óia aí o resultado. Acabaram desse jeito aí!—dando a entender que fora o autor da tragédia simulada.
 Os pescadores assustados com a revelação recolheram as redes e tarrafas botaram num saco fizeram um sinal da cruz e desapareceram pela mata.
—Nunca mais apareceram por aqui, Pareia! Foi um santo remédio!—completou ele sorridente.
Nós nos divertíamos à bessa com a narrativa do fazendeiro, com seu jeitão simplório e os trejeitos de caboclo acostumado à vida dura do campo. Durante todo o tempo não sentou um minuto sequer. A garrafa de argua ardente estava abaixo do meio, mas não demonstravam a mínima alteração. Tomaram a saideira e quando estavam retornando à lida do gado, o Alessandro o interpelou:
—Pareia, tem alguma água pra beber por aqui por perto?
—Tem e muita !—respondeu já sobre a montaria.
—Água boa? –insistiu o Alessandro.
—Pareia, deve sê das boas, pois o gado bébe todo o dia e véve gordo! Naun reclamam não!
 Caímos na risada!
Quando fomos nos certificar da qualidade da água no local indicado pelo Óta o vaqueiro, ficamos assustados. A água era estagnada, barrenta cor de chocolate, totalmente inadequada para consumo humano. Mas nos divertíamos muito lembrando da frase: O gado bébe e véve gordo!
 No outro dia de manhã fomos conhecer a lagoa não muito distante do rancho, na companhia do Pareia. Ficamos encantados! Absolutamente majestosa, com sua floresta ciliar, a fauna abundante e todo seu ecossistema totalmente preservado, diferente do cenário aterrador que tínhamos presenciado durante a viagem, com grandes áreas de queimadas e derrubadas criminosas. Para todo o lado que se olhasse, divisava-se ao longe, dezenas de aspirais fumacentas que denunciavam a devastação sem nenhum manejo ou controle ambiental. As serrarias se proliferam tanto quanto as carvoarias por toda a região. O pressionamos de forma enfática para manter a sua posição na preservação da área, principalmente quanto à pesca predatória. Sentimos que ficou entusiasmado com os elogios à sua postura. Lamentamos muito não termos armado acampamento ao lado da lagoa. Até tentamos viabilizar a mudança, contudo não estávamos preparados. Concordamos que nas próximas viagens à fazenda, ficaríamos arranchados na beira daquele paraíso.
 Nos dias que se seguiram, volta em meia os comentários focavam a lagoa do Pareia. Falou-se tanto que, na nossa despedia o fazendeiro estendeu o braço amistosamente sobre meus ombros e disse:
—Pareia, si vocês gostaram tanto dessa lagoa e estão tão preocupado com ela, vô dá ela prá vocês! E de paper passado!
—Isso é uma brincadeira Pareia?
—Ô seu Roberto, eu num sô homi de brincá cum coisa séria! Vai ficá aqui do jeitinho que tá. Só quem vai pescá aqui são vocês!
 Já voltamos à região dos Carajás por duas vezes e ficamos sempre acampados ao lado da lagoa que continua intacta, aparentemente exclusiva para nosso deleite. A única coisa lhe traz contrariedade e discordância, mas de forma não muito radical, é o fato de soltarmos a maioria dos peixes depois de fisgados. Mas aos poucos nos parece estar cedendo aos nossos argumentos. Afinal sempre que deseja comer um peixe na companhia do seu vaqueiro basta dar uma só tarrafada na lagoa.
—É Pareia pelo menos do jeito que vocês pescam us peixe naum vão acabá nunca!
 Teorizou corretamente numa de nossas prozas. 

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Sobre o autor

Roberto Menks

 
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